Antes mesmo de nascer, Auritha mandou avisar, por meio de um choro na barriga da mãe: “Me escutem”. Bebês que assim fazem costumam receber um cuidado a mais, pois, segundo a tradição indígena tabajara, carregam consigo uma missão especial. Quem conta é a avó e parteira Francisca Gomes de Matos, 92 anos, responsável por dar a essa netinha o nome tupi, cujo significado em português é “pedra de luz”.
No registro de batismo, porém, lê-se Francisca Aurilene. “É porque aqui é Nordeste, tem que ser nome de santo pra homenagear a cidade. Mas Auritha é o nome que sou chamada e levo para assinar minhas obras”, apresenta-se hoje, aos 41 anos, a primeira cordelista indígena mulher com livros publicados no Brasil.
Cearense de Ipueiras (a 300 km de Fortaleza), ela aprendeu a ler e a escrever com cerca de seis anos. Desde pequena, já era perguntadeira, e foi alfabetizada em casa, na falta de escola pelas proximidades, por meio de cordel. “Minha tia Maria aprendeu a ler fazendo receita nas casas de família para trabalhar e foi ela quem me ensinou os primeiros escritos”, partilha.
Dessa literatura popular em versos, que o Ceará reúne tantos representantes, Auritha sentia falta mesmo era de ver livros escritos por mulheres. “Não tinha. Eu era danada, chorava, esperneava. Ah, pois se não tem, vai ter, porque um dia eu vou lançar os meus”, dizia.
Com nove anos, começou a rascunhar a própria história em cordel. Levou só uma tarde para concluir o texto numa folha amarelada, e logo correu para mostrar à avó, a quem considera uma “biblioteca viva”. Com toda serenidade, embaixo de um pé de cajueiro, dona Francisca apenas respondeu que não era o tempo. Auritha ainda iria casar e ter outros capítulos para contar.
De Ipueiras a São Paulo
A matriarca não estava errada. Mas o casamento também não deu certo, e a neta rumou para São Paulo, em 2009, com os rascunhos debaixo do braço e a vontade permanente de contar sua história. Antes disso, porém, já conseguiu o primeiro feito: publicar o livro “Magistério Indígena em versos e poesia” (2007) e vê-lo adotado como leitura obrigatória nas escolas públicas pela Secretaria de Educação do Ceará.
Na capital paulista, enfrentou a dura face da xenofobia e do racismo. Nos dez anos que lá viveu - retornou a Ipueiras em junho de 2020, por conta da pandemia - nunca trabalhou registrada, pois sempre era reprovada nas entrevistas após a autoapresentação.
“No começo foi muito difícil, mas depois eu pensei que se eu trabalhasse registrada ia me apegar muito à empresa e não ia ter como estudar e trabalhar como quero, que é na cultura. Então, parti atrás dos indígenas de São Paulo, fui muito bem acolhida e comecei a participar dos eventos”, recorda.
A técnica do cordel, Auritha já dominava. Era a vez de lidar com outros dois preconceitos: o machismo de um meio literário ainda dominado por homens, e a homofobia, pois também nesse período assumiu-se lésbica.
“Foi mais um desafio pra mim, mas tirei de letra. Não vim para ninguém calar minha boca e me esconder atrás de um padrão que a sociedade quer que eu me encaixe. Infelizmente, as pessoas ainda acham que só homem sabe escrever. Isso não existe, agora a escrita tem dono?”, impõe-se.
Nos primeiros eventos, a cearense ouvia muito que a beleza da mulher indígena era diferente, e se estivesse caracterizada ainda mais. “Quando eu era convidada por um homem, percebia que não tinha mesa compatível com o que eu sabia, ou então ficava expondo cordéis de outras pessoas. Aí eu fui começando a colocar o pé na parede, perguntando qual a mesa que eu ia participar e o tema. Foi então que começaram a me convidar não mais para ser uma exposição”, lembra.
Ganhar esse respeito só foi possível às custas do título de “barraqueira indígena do cordel”, do qual Auritha não se arrepende e até se orgulha.
“Hoje me sinto respeitada. Antes os homens davam muito em cima de mim e eu tinha raiva. Isso parou. Acho que quando a gente se posiciona e diz: 'é meu lugar e quero que me respeitem do jeito que sou', abrem alas para gente passar”, acredita.
Janelas abertas
Em 2018, a cordelista realizou finalmente o sonho de infância. Publicou o livro autobiográfico “Coração na aldeia, pés no mundo” (2018) via selo U’KA Editorial, pertencente ao escritor indígena Daniel Munduruku. Na ocasião, a opinião da avó Francisca era a que ela mais ansiava por ouvir, por isso correu de volta à Ipueiras.
“Quando cheguei aqui, joguei a bolsa no chão, com o livro na mão, e ela continuou calada. Entreguei o livro. Ela olhou, colocou em cima da mesa do lado dela, mas ainda não era a hora de abrir. De tarde, ela juntou todo mundo numa roda e contou minha história mostrando as xilos, exatamente como estava lá, apesar de não saber ler. Foi o momento mais emocionante. Valeu muito a pena esperar até 2018”, recorda.
De lá para cá, Auritha empenha-se na busca por outras colegas indígenas cordelistas, visto que ainda não há registros nos grupos nacionais que ela faz parte.
“Eu sempre falo nos eventos que apareçam mais mulheres indígenas que escrevam cordel, não me deixem sozinha, porque é uma responsabilidade muito grande ser primeira e única. Eu quero ser janela para outras mulheres indígenas terem coragem de escrever sua própria história”, declara.
Enquanto isso não acontece, ela encontra colo na avó de 92 anos. A matriarca traz motivos diários para Auritha permanecer com a voz ativa, mesmo desafiada, seja na poesia, na contação de histórias, no cordel e até no audiovisual, com a cinebiografia “Mulher sem chão”, que lançará em breve. “Ela me encanta e eu encanto ela”, admite a cordelista, certa de que aquele aviso que mandou desde a barriga da mãe encontrou ouvidos férteis para se popularizar.
Acompanhe o trabalho de Auritha nas redes sociais
Instagram: @ita.tabajara
Facebook: Auritha Tabajara