Como preservar a memória da cultura? Fechada, casa de colecionador Christiano Câmara pede apoio

Espaço guarda raridades preservadas ao longo dos 80 anos do memorialista; falta, porém, conservação e estrutura para mantê-lo aberto e em contato com público e pesquisa

Quem vê de fora pode não saber. Mas a casa número 162 da Rua Baturité, em Fortaleza, guarda um pedaço importante da memória do Brasil. É o lar de Christiano Câmara, nome fundamental da cultura cearense e do país. 

Detentor de uma das maiores coleções de discos de cera (78 rpm) e 40 mil discos gerais, além de várias outras raridades, o pesquisador e memorialista partiu em março de 2016 deixando ouro. Joias em áudio, vídeo e lembrança.

Erguida no século passado, a residência, porém, não espelha essa grandiosidade. Pelo contrário: carece de atenção. “Paredes, telhado, os quadros, tudo está desprotegido devido às condições do tempo”, situa Márcio Câmara, cineasta e sobrinho de Christiano. 

Segundo ele, enquanto o tio estava vivo, era o cicerone capaz de dar voz aos livros e discos. Christiano era referência para inúmeros pesquisadores de Música e Cinema dada a paixão pela própria coleção e o largo conhecimento nessas áreas. Não à toa, o acervo, de caráter particular, passava a servir a toda a população, tornando-se público por decorrência.

“O nó da questão é que, depois que ele morre, a casa passa a ser depositária somente de um acervo privado que agora não precisa mais de cuidado, pois ela deixou de ser pública, de ter alguma serventia”, explica o sobrinho. Neste momento, quem tenta manter o lar são as filhas de Christiano, Zuleica e Wanda, com toda a dificuldade que a tarefa impõe.

Por que o acervo é tão importante

Para dimensionar a relevância do acervo, é interessante compreender como operava o método de Christiano. O foco de pesquisa dele eram os primórdios da música brasileira, abarcando desde o surgimento até a fundamentação de ritmos e canções que marcaram a experiência musical nacional, em especial nos anos 1910, 1920, 1930 e 1940

No Cinema, a mesma coisa: mirava do surgimento da sétima arte à consolidação do audiovisual como entretenimento popular. O detalhe, segundo Márcio, é que tudo estava na cabeça do memorialista. Ele mesmo sabia onde estava determinado disco, livro ou fita quando expunha argumentos sobre alguma obra. 

“A análise dele, além do fonograma ou do filme em si, era social, econômica e política, dando um contexto que embasava a obra em outra experiência, muito mais rica em contexto e conhecimento”. Fragmentos desse jeito tão particular de se apropriar da cultura está em “Rua da Escadinha 162”, documentário sobre o patrimônio de Christiano Câmara.

Realizado pelo próprio Márcio, o filme está no YouTube e apresenta as ideias e a casa do colecionador, propondo uma viagem às nossas raízes culturais, sociais e políticas. Em certo instante, com a eloquência que lhe era cara, o protagonista fala: “O pesquisador de música popular acha que não deve navegar na música erudita. Dizem, ‘pra quê cinema, eu quero saber disso? De poesia?’. Mas está tudo interligado”.

Mais à frente, analisa, sempre em defesa da cultura popular: “A cultura oficial só existe no papel. Então essa história de Museu da Imagem e do Som e tal, não passa de cabide de emprego, de apadrinhado político. Na realidade, pouquíssima coisa se tem lá. A história da fonografia, do rádio, da televisão, eu tenho toda em vídeo e não tem um local pra exibir”.

Márcio Câmara reforça a teoria do tio. Segundo ele, o poder público – seja na esfera municipal, estadual ou federal – “nunca olhou” para o acervo como algo a ser preservado. “O Christiano recebia governador, prefeito, deputados, e eles sempre prometiam algo, acenavam em direção a alguma subvenção. Mas isso sempre ficou no espírito da boa vontade, da caridade cristã”.

Por isso reforça que, após a morte do estudioso, a casa tornou-se novamente um acervo privado. E, como tudo o que é privado, a manutenção passou a fazer parte também de uma dimensão particular, sem intervenção pública.

“Vivemos uma realidade cada vez mais instantânea, de cortes, de TikToks, de uma atenção de, no máximo, um minuto a alguma questão. O debate sobre preservação – seja do acervo da Rua Baturité, seja de qualquer outro – com certeza sofre influência desses tempos, categorizando como quinquilharia o que um dia foi presente”.

Diálogos com instituições

Foram muitas tentativas de diálogo. Conforme conta, antes de o Museu da Imagem e do Som do Ceará (MIS-CE) virar realidade, Márcio já conversava com a diretoria do equipamento sobre a possibilidade de incorporar a coleção de Christiano ao acervo. Nada.

“A própria Secretaria de Cultura do Estado pagou e comprou o acervo de Humberto Teixeira, o compositor de Iguatu”, recorda, enfatizando ainda que a conversa com as entidades procuradas aconteceu por dois anos, com alguns acenando para a possibilidade do tombamento, mas sem nada de fato ter sido efetivado. 

“Da última conversa com a diretoria do MIS, me mandaram ir atrás de editais de preservação, e que o MIS tinha outra perspectiva em relação ao que pretende apresentar ao público”. Para ele, a possível solução para o problema é uma gestão compartilhada da casa por algum órgão, público ou privado, que tenha desejo de querer mantê-la onde ela está e como sempre foi: um lugar de pesquisa e conhecimento. 

“Mas isso envolve uma força tarefa que precisa de mais gente envolvida, não somente as duas filhas do casal”, pontua o cineasta. “Acredito que a importância da pesquisa e crítica do Christiano, dentro de um contexto histórico, abrange o mundo. A casa precisa de reformas, mas mais do que nunca precisa de desejo. Precisamos de um antídoto anti-Alzheimer para os nossos gestores para que possam lembrar do que foi presente um dia".

Para reverter a situação

De forma a sensibilizar o público para a questão da casa e do acervo, bem como problematizar outra diversidade de questões, Márcio Câmara está fazendo um filme homônimo sobre Douvina Câmara, esposa de Christiano. A mulher assumiu a responsabilidade da coleção até o marido falecer. Feito ele, era igualmente devota à memória cultural.

A semente para o trabalho começou no corte final do já citado “Rua da Escadinha 162”. Neste, Márcio optou por fazer um solo de Christiano, deixando de lado o material colhido com outras pessoas, incluindo Douvina.

“A certa altura, ela ainda morando na casa, foi diagnosticada com Alzheimer, exatamente quando acontece a pandemia da Covid. Assim, a realidade de saúde de Douvina era para mim a metáfora da realidade: a pessoa com uma doença que causa esquecimento e a própria casa sendo esquecida também por todas as pessoas e órgãos públicos”.

O acompanhamento do cineasta durou três anos, até o desenrolar da situação de saúde da personagem principal. Márcio filmou a casa e a atividade nos cômodos. O filme começa justamente nessa junção do material vivo junto àquele filmado nos últimos anos de existência da mulher, numa reflexão sobre a morte e como podemos nos preparar para ela.

  

“Não há entrevistas no filme. Apesar de querer informar, quero, antes de mais nada, refletir sobre a metáfora do esquecimento. Quero sensibilizar e fazer o espectador pensar e, assim, o filme ganha uma dimensão maior que algum gênero possa descrever, incorporando um cinema de observação, cinema direto, material de arquivo, mas acima de tudo de poesia”.

Outro interesse do cineasta em fazer o filme com Douvina surge a partir de uma revelação dela. Ao acordar, sempre tinha um bilhete de Christiano para a esposa – ele era notívago e demorava a dormir. “Daí pedi pra ver esses bilhetes. Achava que ela ia pegar algum envelope e ia me mostrar uns poucos exemplares. Ela apareceu com uma caixa grande repleta deles, de todos esses anos que ele escrevera para ela”.

Ficou, então, cristalino que enquanto havia um personagem como Christiano – preservando fisicamente discos, livros, pensamentos e cultura – existia também Douvina, cuidadosa com os bilhetes, resguardando poesia, afeto e carinho. “Nada mais justo do que centrar nela a narrativa para que seja reconhecida, diante de sua importância, como também responsável pelo acervo”.

O que diz a Secult

Procurada pela reportagem devido ao diálogo de Márcio Câmara com o MIS, a Secretaria da Cultura do Ceará (Secult-CE) – responsável pelo equipamento – afirma que “reconhece a importância e o valor histórico do acervo pertencente ao pesquisador e memorialista, Christiano Câmara, para a memória da Música e do Cinema Cearenses".

No entanto, conforme a nota, destaca que, "até o momento, não recebeu solicitação formal para a doação deste acervo ao Estado, para que possa iniciar um estudo e elaborar um parecer. E, que somente a partir de avaliação técnica, poderá requerer orçamento específico para este fim”.

 

Outros acervos de memorialistas em Fortaleza

  • Nirez: colecionando antiguidades desde criança, Miguel Ângelo de Azevedo, o Nirez, dispõe de um acervo de mais de 141 mil peças, oriundas de vários estados brasileiros e também do exterior. O Arquivo Nirez funciona na Rua Professor João Bosco 560, Rodolfo Teófilo, próximo à reitoria da UFC. Com mais de meio século de existência, dispõe de, entre outras coisas, 22 mil discos antigos, de cera, em 78 rotações, além de farta memória iconográfica, com 26 mil fotos que contam a história do Ceará.

 

  • José Augusto Bezerra: O acervo da Fundação José Augusto Bezerra, criado a partir da biblioteca pessoal dele – formada desde os 11 anos de idade – possui 30 mil títulos. A seleção inclui livros raros, documentos históricos e peças de arte, com ênfase em Língua Portuguesa, História do Brasil e do Ceará, Literatura Brasileira, Oratória, Numismática [estudo e coleção de moedas e medalhas], o maior conjunto de dicionários do País e a curadoria de obras de relevantes vultos das letras, a exemplo de José de Alencar, Padre Antônio Vieira e Rachel de Queiroz.