A melancolia da última quarta-feira de cinzas do Brasil se estende até hoje. Foi exatamente no dia 26 de fevereiro de 2020, após os quatro dias de festa, que o Ministério da Saúde confirmou o primeiro caso de infecção pelo novo coronavírus no País. Naquele momento, quando pouco se sabia sobre a doença que se alastrava por todo o mundo, ninguém imaginava que, um ano depois, as medidas de segurança para conter a transmissão ainda estivessem vigentes, entre elas a necessidade de evitar aglomerações.
Não fosse tudo isso, Fortaleza e o resto do Brasil já estariam em clima de pré-carnaval, mas enquanto a campanha de vacinação não chega por aqui, agremiações que vivem em função dessa manifestação o ano todo, a exemplo de blocos, maracatus, afoxés e escolas de samba, seguem pautadas pela incerteza de como farão para pagar as contas do mês e manter as atividades dos grupos, ainda que virtualmente. É certo que muitos deles foram contemplados recentemente por recursos emergenciais como os viabilizados pela Lei Aldir Blanc, mas o recente anúncio de suspensão do Carnaval pelo Governo do Estado do Ceará - ainda que Salvador, Rio e São Paulo trabalhem com datas para julho - inquieta os cearenses.
“Não podem só dizer que não vai ter carnaval sem nem ouvir a gente. Queremos nos reunir com o novo secretário da Cultura de Fortaleza até sexta-feira (15) para propor que aconteça no começo de julho, com a publicação de editais em fevereiro. Tem muita gente passando necessidade e dependendo desses recursos”, afirma o presidente da Associação Cultural das Entidades Carnavalescas do Ceará, Raimundo Praxedes.
Em nota ao Diário do Nordeste, porém, a Secultfor informou que “o Ciclo Carnavalesco de 2021 não ocorrerá de forma presencial. Diante do cenário pandêmico, estão sendo estudadas alternativas que obedeçam aos protocolos sanitários e decretos de isolamento em vigor. Estão previstas ainda reuniões com representantes de setores culturais que atuam no segmento para discutir a possibilidade de realizar eventos de forma virtual”.
Blocos
Em outubro passado, nove agremiações de Fortaleza assinaram uma nota pública em que estabeleciam como condição irreversível para pôr os blocos na rua, em 2021, “a existência de uma vacina eficiente e segura contra o novo coronavírus (Sar-Cov-2), bem como a realização, por parte do poder público, de uma ampla campanha de imunização gratuita da população". O Bloco Unidos da Cachorra está entre elas.
“A gente segue o ritmo de Rio e São Paulo, porque tocamos samba. Temos a perspectiva de que se a vacinação vier, e em julho todo mundo estiver imunizado, aconteça o carnaval, porque a onda vem de lá. É precipitado dizer que vamos fazer em junho, julho, mas temos a expectativa de que pode acontecer, e se acontecer a nossa bateria está preparada para pegar os tambores e cair no samba”, anuncia o presidente-fundador do Bloco Unidos da Cachorra, José de Castro Moreira, o Gildo.
Aos 68 anos, ele está desde abril confinado com a família, mas acompanha virtualmente as atividades da bateria que ajudou a fundar há duas décadas. Com cerca de 200 brincantes e profissionais envolvidos, o grupo trabalhou com oficinas de percussão virtuais de maio a outubro, retomando ensaios presenciais da escolinha após o decreto estadual que liberou a reunião de até 100 pessoas. Mas sem os encontros que aconteciam todos os sábados, com a comercialização de álcool e souvenirs para manter o espaço alugado, o som, entre outras despesas, tudo ficou mais difícil.
“O dinheiro que entra é para manter o bloco, é para ajudar o trabalho de revitalizar o samba, não deixar o samba morrer”, explica Gildo. No fim do ano passado, eles foram contemplados no edital para Grupos e Coletivos Culturais da Secretaria de Cultura de Fortaleza, viabilizado pela Lei Aldir Blanc. O recurso emergencial de R$12.200 reais auxiliou com as despesas imediatas e, como contrapartida, o Unidos da Cachorra deve realizar uma live em fevereiro, seguindo todos os protocolos vigentes no período.
“Vamos cuidar da saúde da gente, cooperar para não fazer aglomerações. Depois que isso passar, o carnaval vai continuar e a gente tem que continuar com ele, mas não se pode fazer tolices agora para que se percam mais entes queridos. A gente com saúde, o samba continua”, sentencia Gildo.
Maracatu
Os tambores do maracatu seguem nesse mesmo ritmo. Pingo de Fortaleza, presidente do Solar, reconhece o impacto emocional, afetivo, estruturante e logístico que a pandemia causou, mas faz questão de garantir o coletivo unido, mesmo que virtualmente. “Nós temos dezenas de grupos no WhatsApp, de batuque, figural, coordenação, dança, então a gente vai mantendo o maracatu ativo. Vamos lançar agora o tutorial da música nova, sempre estimulando que vamos fazer o carnaval no seu tempo”, afirma.
No ano que passou, o Solar lançou clipe gravado em casa, participou de lives e, mais recentemente, até de algumas atividades presenciais, com número reduzido de brincantes. A loa de 2021 faz referência exatamente a esse processo, especialmente nos últimos versos: “Dançar a qualquer tempo/ O carnaval é dentro de Si”.
Pela Lei Aldir Blanc, o grupo conquistou R$10 mil reais no edital da Secretaria de Cultura do Estado (Secult) de Patrimônio Cultural do Ceará, na categoria Grupos de Tradição e Projeção (Carnaval), e R$15 mil reais no Edital de Auxílio para Espaços Culturais da Secultfor. O recurso tem sido fundamental para manter a sede do grupo e planejar os passos futuros, que os cerca de 300 brincantes esperam ansiosamente.
“Concordo plenamente com o Governo e a Prefeitura. Acho necessário e urgente não realizar o carnaval nesse momento da pandemia, agora se existe um plano de imunização, e se talvez estivermos em julho imunizados, é possível fazer um planejamento. Acho que cabe uma atenção desses órgãos, com o segmento, que não envolve só os carnavalescos, mas todo um conjunto da cadeia produtiva”, diz Pingo.
Afoxé e Escola de Samba
O coordenador cultural do Afoxé Acabaca, Mestre Marcello Santos, partilha da mesma ansiedade pelo anúncio. Com mais de 200 brincantes associados, Marcello tem percebido o distanciamento de alguns desde o início da pandemia, além de relatar a dificuldade de organizar atividades virtuais. Desde março passado, eles realizaram apenas duas lives, sendo uma delas viabilizadas no último dia 3 de janeiro com recursos da Lei Aldir Blanc via Secultfor.
“Vacina chegou, a gente não vai ter mais essa Lei para auxiliar, as atividades culturais continuam, então eu acho que nossos governantes poderiam ver como vão fazer o carnaval, se vai ser esquema de live. O dinheiro do carnaval já tá la, tanto da Prefeitura como do Governo, são recursos do tesouro municipal e estadual. A gente não pode simplesmente dizer que não vai ter carnaval e pronto. Em um ano ou dois sem atividade, você pode acabar com uma instituição de 30, 40 anos”, desabafa.
Com mais de quatro décadas em atividade, a Escola de Samba Imperadores da Parquelândia também conta com esses recursos para dar continuidade ao projeto. “Tivemos algumas perdas no nosso quadro de colaboradores e brincantes. Com a pandemia ficamos impossibilitados de fazer apresentações, tínhamos vários projetos que não saíram do papel. Para manter uma instituição desta, o custo é muito alto, às vezes precisamos tirar do próprio bolso”, relata do presidente da agremiação, Carlos de Brito.
Até o fechamento desta edição, a Secultfor não respondeu aos questionamentos sobre a disponibilização de editais específicos com o recurso municipal anualmente reservado para o carnaval.
Já a Secult-CE, por meio de nota, destacou que “alguns grupos foram contemplados tanto na Lei Aldir Blanc quanto nos Editais DendiCasa e Arte em Rede”, mas também não mencionou editais para 2021. A pasta estadual disse ainda que, em breve, será consolidada uma programação on-line, a ser divulgada nas redes sociais da Secult e que aguarda “posicionamentos dos comitês Científico e Intersetorial de Enfrentamento à Covid-19, que analisam, diariamente, os índices epidemiológicos e deliberam sobre os decretos que autorizam a realização de eventos culturais no Estado”.