Coletivo de reggae fortalece cultura de bailes gratuitos em espaços públicos de Fortaleza

Liderado pelos DJs Coka Vibration e Vládia Soares, Come inna di Dance completa quatro anos em atividade neste mês com participação em festivais da Capital

No fim da década de 40, um movimento que buscava democratizar o reggae começou a tomar conta das ruas de Kingston, capital da Jamaica. Com o intuito de levar música a quem não tinha dinheiro suficiente para comprar os próprios discos, DJs e MCs começaram a montar sistemas de som móveis, com caixas de som e amplificadores potentes, e usá-los para criar verdadeiros bailes ao ar livre, no que ficou conhecido como a cultura Sound System.

No Brasil, os sistemas de som começaram a se popularizar na década de 70, no Maranhão, espalhando-se especialmente pelos demais estados do Nordeste e no Sudeste nos anos seguintes. Em Fortaleza, a prática começou a se popularizar no início dos anos 2000 – e, há quatro anos, ganhou novo fôlego com um coletivo que, além de resgatar a cultura do sound system, tem levantado a bandeira do protagonismo preto e feminino no reggae: o Come inna di Dance, organizado pelos DJs Vládia Soares, 37, e Coka Vibration, 38.

Na Capital, há quatro coletivos de sound system em atividade atualmente: Almada Black, Come inna di Dance, Dub Foundation – considerado pioneiro no Ceará – e Impact Sounds.

A história do casal – que também está à frente do Deixe Comigo Bar, no Joaquim Távora, onde o reggae é protagonista – se entrelaça com o amor dos dois pelo gênero musical. Na adolescência, Vládia tinha como referência nomes como Alpha Blondy, Bob Marley e Edson Gomes, mas foi só quando conheceu Coka, em 2017, que fez “uma imersão na cultura reggae”. 

O companheiro, por outro lado, já era regueiro experiente: nos anos 2000, tinha sido baixista da banda de reggae Leões de Pedra, DJ residente no Mocó Estúdio e idealizador do projeto Roots and Culture, no Reggae Club. No entanto, ainda não tinha realizado um sonho antigo: construir seu próprio sistema de som.

A ideia ganhou corpo em 2020, já na pandemia, quando o Dub Foundation decidiu se desfazer de algumas caixas de som. Mesmo no aperto, o casal decidiu que era a hora de investir no sonho. Com pagamento facilitado pelos colegas de sound system e o apoio da Lei Aldir Blanc, conseguiram viabilizar o início do Come inna di Dance.

Em tradução livre, ‘Come inna di Dance’ significa ‘Vamos dançar’

“O objetivo era realmente botar pra frente, ser Sound System, porque aqui em Fortaleza a cultura é ainda pouquíssimo difundida”, conta Vládia. “A nossa intenção era montar um sistema de som e trabalhar com esse sistema de som da maneira que a gente acredita”, completa.

O sonho tinha também algo de missão para Vládia e Coka. Isso porque, apesar de ter um bar de reggae, o casal entendia que, mesmo quando acessíveis, espaços fechados – como bares, clubes, shows – limitam o público. Quem mora longe desses locais, não pode pagar ingresso, bebida e comida acaba ficando de fora da festa.

A cena reggae, em Fortaleza, é limitada às casas de show – Reggae Club, Kingston, Jam Rock. E o sound system quebra tudo isso. Ele sai das casas de show e leva a galera que tem menos acesso para as praças, para poder curtir um reggae, porque nem todo mundo tem grana para estar toda vida pagando ali.”
Vládia Soares
DJ, sócia-proprietária do Deixe Comigo Bar e uma das idealizadoras do Come inna di Dance

Assim, decidiram que levariam o Come inna di Dance para as ruas da Cidade, ecoando a cultura reggae para um público mais diverso. “A cultura Sound System é uma cultura vinda das periferias, com o intuito de dar voz e vez a todos. Nosso objetivo era esse: montar o nosso sistema de som e trabalhar com todos. Dar voz aos MCs, à galera que faz os projetos de dança”, destaca Vládia. “E a gente vem conseguindo fazer essa movimentação”, completa.

Sound System ocupa espaços culturais

Atualmente, além das atividades sazonais, o Come inna di Dance possui uma grade de programação fixa em espaços públicos da Capital. Mensalmente, o sistema de som de Vládia e Coka ocupa o Beco do Tambor, no Centro. Já às segundas-feiras, o coletivo ocupa o Centro Cultural Banco do Nordeste, junto ao grupo Ukilombo Capoeira, com o projeto “Rodas das Pretas e dos Pretos em Busca da Ancestralidade”. 

Mas uma das principais ocupações tem ocorrido no Dragão do Mar, na Praia de Iracema. Há um ano, uma vez por mês, sempre aos domingos, o duo monta seu sistema de som no Espaço Rogaciano Leite Filho e faz a festa de amantes de música e dança de todas as idades, do fim da tarde até a noite.

O trabalho, no entanto, começa cedo: a dupla chega ao Dragão ainda de manhã para garantir que tudo esteja perfeito às 16h, hora de início do evento. Ocasionalmente, Vládia e Coka contam com o auxílio de dois ou três profissionais freelancers para a montagem e a desmontagem do paredão de mais de dois metros de altura, mas muitas vezes o trabalho é realizado apenas pela própria dupla. A missão é grande, garante Vládia – mas tudo vale a pena quando o público começa a chegar e curtir.

A idealizadora destaca que a representatividade feminina do Come inna di Dance vai além do setlist: segundo Vládia, o coletivo é o único sound system de Fortaleza com uma mulher ‘na linha de frente’.

O mais rcente Sound System no Dragão aconteceu no últimp domingo (10), data que marcou o aniversário de 4 anos do Come inna di Dance, e contou com uma programação ampla, com o setlist dos DJs Vládia e Coka, oficina de reggae do passinho e apresentação do compositor e pianista norte-americano Jaime Hinckson, produtor do cantor Julian Marley.

De início, o público estava tímido, chegando aos poucos e observando Vládia tocar hits de nomes femininos do reggae, como Natasja, Lila Iké e Nina Girassóis. Uma oficina de reggae do passinho com o grupo OSS Passinho foi a responsável por começar a movimentar o evento, atraindo crianças e jovens para a frente do sistema de som.

Pouco tempo – e um setlist recheado e diverso – depois, a pista já estava cheia de casais dançando reggae a dois, passinho e o que mais desse vontade.

“Pra gente, é muito importante que a gente, enquanto um casal preto, periférico, esteja ocupando esses espaços”, comemora Vládia. “As nossas vozes estão ecoando, e não só as nossas, mas de todo mundo que faz um movimento com a gente – os projetos de dança, que estão sempre com a gente, os MCs”, completa.

Alguns dos grupos que frequentemente se apresentam nos eventos do Come inna di Dance são os coletivos de reggae do passinho da Capital, como o OSS Passinho e o Debocha Reggueiro, além do projeto Educa Reggae, que promove aulas de dança e atividades focadas em inclusão e diversidade na arte.

Diretor do OSS Passinho, Everton Yago Bezerra da Silva, o Bully, ressalta que essa integração do sound system e dos grupos de dança é algo que “nenhum outro projeto faz” e que essa rede de apoio entre os amantes do reggae têm auxiliado na democratização do gênero musical na Cidade nos últimos anos.

“Quando eu conheci o reggae, tive a oportunidade de conhecer um gratuito, mas só existia um: o Reggae do Guaraná, no Centro. O resto era tudo pago”, lembra Bully. Hoje, o coreógrafo comemora a existência de diversos projetos gratuitos, “praticamente um em cada bairro”, a exemplo do Sound System no Dragão, do “Reggae da PN” (Pracinha do North Shopping) e de projetos no Conjunto Ceará.

“É muito importante, porque é uma coisa que é de periferia – então, encontrar o reggae na rua é uma coisa que abraça muito a gente, a gente se sente mais acolhido para conhecer. Conhece de graça, ama de graça e frequenta de graça”, destaca.

Eventos mobilizam o amor do público pelo reggae

Um dos mais apaixonados casais que dançavam o reggae “a dois” em frente ao sistema de som do Come inna di Dance no último domingo teve o gênero musical como ponto de partida para o romance. 

Quando conheceu o caminhoneiro Sidney Silva, hoje com 40 anos, a fiscal de prevenção de perdas Andréa Santos, 48, era fã de forró; ao acompanhar o amor do namorado pelo reggae, no entanto, foi trocando o ritmo nordestino pelo som jamaicano e não se arrepende. “Eu deixei o forró para me juntar com ele ao reggae”, brinca, afirmando que se encantou pela leveza da música. “É outra cultura, outro ritmo”, completa.

A paixão de Sidney pelo reggae veio da infância, quando morava com a família na praia do Iguape. Via os tios curtindo Tribo de Jah e cresceu com atenção especial àquela sonoridade. Com 20 e poucos anos, começou a frequentar shows de reggae na Praia do Futuro e festas no Reggae Club – mas nunca tinha curtido um sistema de som até o aniversário de 4 anos do projeto de Vládia e Coka.

Empolgado, fez diversas fotos e vídeos com a esposa para registrar o momento e promete voltar na próxima folga do trabalho que casar com uma sessão. “É maravilhoso, e abre espaço para quem não gosta vir se divertir e se apaixonar pelo reggae”, destaca. “A gente pode ver de perto, ficar mais próximo do som, dos cantores que vem se apresentar. Sentindo a vibração positiva mesmo”, completa.

Quem também aproveitou a sessão comemorativa para dançar foi a dupla de amigas Ana Cristina Marques, 22, a Criss Shade, e Sindy Késsia Mawe, 23. Frequentadoras assíduas do Reggae do North, no Presidente Kennedy, as duas conviveram com o reggae desde a infância, mas redescobriram o ritmo juntas, a partir do interesse e dos estudos na área da dança.

Pesquisadora de tribal fusion e estudante de dança na Universidade Federal do Ceará (UFC), Criss, que cresceu em Itarema, a cerca de 200km da Capital, conta que aprendeu a ouvir reggae quando criança, mas se encantou pelo reggae a dois, o passinho e os encontros promovidos pelo sound system já na faculdade. Junto com Sindy, ela tem acompanhado os encontros do Come inna di Dance no Dragão do Mar nos últimos meses.

“É muito massa, muito inclusivo e tem uma inclusão feminina muito forte, o que eu sinceramente aprecio muito. É o tipo de coisa que você descobre na hora e depois, em casa, você vai atrás de saber mais, porque é muito interessante”, comenta.

Já Sindy, que é professora e estudante de dança, teve os primeiros contatos com o reggae na comunidade do Canindezinho, em Fortaleza, onde nasceu e cresceu. “Talvez o reggae tenha sido uma das primeiras vertentes de dança pelas quais eu me interessei, mas acho que, por conta principalmente de um preconceito que está enraizado na gente – até na gente, que é da periferia – eu demorei a buscar isso, esse conhecimento e essa vivência”, explica. 

O encanto pelo ritmo, porém, é antigo, “desde que via os meninos colocando música no celular em frente de casa, com a Kenner deles, fazendo o passinho”, rememora.

Para a artista, frequentar o Reggae da PN e o Sound System no Dragão com a amiga com quem divide essa memória tem sido “uma experiência enriquecedora” que tem ajudado as duas a entender que o reggae é “uma cultura muito rica que tem muito para agregar nas nossas vidas”. 

Ter esse acesso em espaços públicos e gratuitos, destaca Sindy, é parte fundamental do processo – não só para ela e Criss, mas para outros jovens que vêm da periferia e de cidades do interior do Ceará, afirma.

“A gente veio conseguir estabelecer a nossa pesquisa em dança porque a gente estuda em uma universidade pública. Então, o que esses espaços públicos e coletivos constituem é extremamente relevante pra gente, sobretudo para pessoas pretas, periféricas e indígenas, que vêm desses lugares e que não tem tanto acesso”, conclui.

Agenda Come inna di Dance

No mês em que completa quatro anos, o coletivo ocupará, além das ruas da Cidade, dois festivais de música em Fortaleza. Neste domingo (17), o duo de DJs se apresenta na etapa Ceará do Cena Nordeste Festival, no Jardim do Theatro José de Alencar, a partir das 18h15. O evento é gratuito. 

Já no próximo sábado (23) e domingo (24), o Come inna di Dance se apresenta nos dois dias do Festival Elos, no Aterrinho da Praia de Iracema. Na ocasião, projetos de dança voltados para a cultura reggae também participarão das apresentações. A programação também é gratuita. 

Acompanhe o coletivo nas redes sociais: @comeinnadidance_