A maior credencial de Helena Roraima Leite é ser filha de um homem livre. Um pássaro, conforme descreve. Um albatroz. “Dessas aves que, se as prendem, elas deixam de cantar, se entristecem”, diz. Alguém cuja necessidade era voar e, se fosse para bem longe e perto da natureza, melhor.
Essa perspectiva acerca do pai, Rogaciano Leite, foi desenvolvida desde muito cedo, sendo reiterada conforme Helena mergulhava nas pesquisas sobre o trabalho dele. “Durante esse processo, tive a oportunidade de conversar com alguns de seus amigos e constatar que a visão que tenho dele não é uma visão romantizada de filha. Ele era assim mesmo”, explica, em entrevista ao Verso, por e-mail, de Madri (ESP), onde reside.
Foi exatamente com esse espírito de singrar estradas que o notável artista – nascido em 1º de julho de 1920 no sítio Cacimba Nova, propriedade do avô, na vila de Umburanas, hoje município de Itapetim, pertencente, à época, a São José do Egito, em Pernambuco – saiu mundo afora a fim de revolucionar contextos. Transformar pela presença e palavra. Rogaciano Leite foi um dos mais importantes poetas e jornalistas do País, cujo centenário celebramos nesta quarta-feira (1º).
Em comemoração à data, havia uma extensa programação organizada pelos governos municipais de Itapetim e São José do Egito, em solo pernambucano. Na Capital cearense – cidade em que ele chegou em 1944, trazendo consigo ousadia e determinação em ocupar novos círculos culturais – a movimentação era igualmente preparada. Porém, com a pandemia do novo coronavírus, tudo foi postergado e até dezembro não há expectativa de realização de quaisquer eventos públicos referentes à efeméride.
Ainda assim, o momento não passará em branco. Vários admiradores e a família de Rogaciano Leite estão escrevendo ou gravando mensagens para homenageá-lo na página do centenário dele, nas redes sociais. A fanpage reúne imagens e informações importantes acerca do artista como forma de atestar a potência de sua obra. Além disso, as criações poéticas dele estão sendo reunidas num volume feito especialmente para a ocasião, editado pela Editora CEPE, de Pernambuco, com previsão de lançamento em dezembro ou início do próximo ano.
Outros títulos de autoria do poeta, muitos deles inéditos, igualmente inserem-se no cronograma da família para trazê-los à tona, a partir de patrocínios e parcerias. Um deles, composto de fotos ilustrativas, compila as séries de reportagens com as quais Rogaciano ganhou dois prêmios Esso (hoje, Prêmio ExxonMobil, maior reconhecimento do Brasil no setor), frutos da carreira como jornalista.
Também está nos planos um documentário, produzido pela Sinfonia Filmes, com o objetivo de contar a trajetória do poeta, com previsão de lançamento em 2021, além de reunir, em brochura, as crônicas escritas por ele, entre outros projetos editoriais.
O novo livro do pesquisador cearense Gilmar de Carvalho, “Poéticas da Voz - Aboios, benditos, cantoria, cordel, emboladas, loas, saraus, torém, trovas” também contempla o legado de Rogaciano. Prevista para ser publicada no próximo ano, com o selo da Expressão Gráfica e Editora, a obra foca sobretudo no trabalho dele no ramo da cantoria. Não à toa, é citado com outros expoentes no ramo, como Zé de Matos, do Cariri; o paraibano radicado no Ceará, Luiz Dantas Quezado; Naco Martins; Cego Aderaldo; Patativa do Assaré, entre outros.
“Rogaciano era um homem letrado e um de seus méritos foi levar a cantoria para espaços legitimados. Organizou festivais de cantorias pelo Ceará e depois esse modelo foi copiado por Pernambuco”, situa Gilmar.
Ineditismos
Além do aconchego plantado no seio familiar ao dividir a vida com a esposa, Maria José Ramos Cavalcante, e os seis filhos, várias foram as contribuições de Rogaciano Leite na cultura popular nordestina. Para Helena Roraima, levando em conta a terra alencarina, a maior herança dele foi fazer pelo Ceará o que, até então, o Estado desconhecia.
“Ele abriu as portas do Theatro José de Alencar para a cultura popular. Realizou, ali, em 1947, o inédito I Congresso de Cantadores. Trouxe os melhores cantadores do Nordeste para os cearenses apreciarem os versos que transbordam dos poetas repentistas do Vale do Pajeú e para cantar com os poetas locais. Esse intercâmbio enriqueceu a cultura, sem dúvidas. Rogaciano mostrou para a elite intelectual a preciosidade da poesia pura, espontânea e que sai da alma. A impressionante arte da poesia de improviso”, detalha a filha.
Estudioso da trajetória do poeta – autor de “Rogaciano Leite: o lírico e o épico em trânsitos e trajetórias da cultura popular (1920 a 1969)”, monografia defendida em 2018 pela Universidade Estadual do Ceará – o historiador Edmilson Teixeira reitera a singular importância do artista na inserção da cantoria em novos ambientes.
“Os violeiros, por muitos anos, tinham a circularidade resumida ao universo rural. Suas apresentações eram muito comuns em sítios, feiras, igrejas e bares. Porém, analisando criteriosamente a trajetória de Rogaciano Leite, podemos captar, dentro do trânsito sertão-cidade, como se deram esses primeiros contatos dos cantadores rurais com esses políticos urbanizados”, dimensiona.
Segundo as pesquisas de Edmilson, no Ceará as apresentações de Rogaciano se concentraram na Casa de Juvenal Galeno, diante de membros da sociedade letrada de Fortaleza. “Lá, ele estabeleceu uma de suas maiores parcerias, o cantador e também jornalista João Siqueira de Amorim. Podemos dizer que foi a partir do sucesso dessas apresentações em pequenos festivais realizados nos palcos do Theatro José de Alencar e do Teatro São José que se originavam os grandes Congressos dos Cantadores”.
Além da já mencionada primeira edição do evento, houve mais duas. O segundo encontro, em 1948, aconteceu no Estado natal de Rogaciano, no Teatro de Santa Isabel, em Recife, contando com nomes como Cego Aderaldo, Dimas Batista, Vicente Granjeiro e Domingos Fonseca. Por sua vez, o terceiro foi sediado na cidade do Rio de Janeiro, em maio de 1949, também organizado por Leite. O evento teve a participação praticamente dos mesmos artistas das duas primeiras edições.
“Igualmente, o momento foi muito bem-sucedido e divulgado pela imprensa nacional. Vários intelectuais pontuaram que ali acontecia, enfim, a consolidação de um trabalho de promoção cultural, em que o cantador deixava de ser um artista do interior do Nordeste, saltando das páginas dos livros de Leonardo Mota para os palcos e olhos curiosos das plateias das grandes capitais”, situa Edmilson.
Não à toa, o estudioso destaca que esse processo – denominado por ele como “teatralização da cantoria” – foi o mais expressivo legado de Rogaciano. E, conforme os estudos realizados, lhe pareceu que a cidade escolhida pelo poeta como palco para essa revolução cultural foi Fortaleza, onde produziu grande parte da antologia poética e se projetou como um intelectual por todo o País.
“Sei o carinho que Rogaciano Leite cultivava pelo Ceará, isso está presente em todas as suas memórias. Mas não podemos deixar aqui passar o seu tamanho sentimento para com o Nordeste e o Brasil, como um todo. A vida do poeta foi edificada sobre as estradas, e suas marcas estão por todas as partes”, completa o historiador.
Farto legado
Quanto às obras que Rogaciano Leite deixou, ganha notoriedade o livro “Carne e Alma” (1950), cujo aniversário de 70 anos é celebrado em 2020. Publicado pela casa fluminense Irmãos Pongetti Editores, é a criação poética mais conhecida do artista, tendo em vista a grande amplitude conquistada por meio de três reedições – 1971 (Fortaleza), 1988 e 2009 (Recife).
O autor também escreveu, em opúsculo, o livro “Acorda, Castro Alves!” (1947), e “Poemas Escolhidos” (1956). Ainda deixou muitos escritos sobre o contato desenvolvido com os maiores cantadores de sua geração, entre eles Cego Aderaldo (de quem foi bastante amigo) e Antônio Marinho. Esses trabalhos ainda constam sob análise e catalogação, para que possam vir a integrar futuras obras.
Como poeta-compositor, Rogaciano Leite é autor de vários poemas musicados e gravados. “Cabelos Cor de Prata”, música de Sílvio Caldas, de 1950, é um exemplo. A canção fez grande sucesso nas décadas de 1950 e 1960, ficando entre as primeiras nas paradas de sucesso. Foi regravada várias vezes por Sílvio em LPs, bem como por Nelson Gonçalves, Jorge Fernandes, Francisco Petrônio, Ventura Ramiro, Armando Vidigal, Bebeto Castilho, entre outros.
Por sua vez, a faceta jornalística de Rogaciano também merece destaque. Conhecido pela capacidade de escrever reportagens inteiras em versos, ganhou distinção sobretudo pelas matérias de cunho social, assumindo-se um jornalista combativo e que denunciava os horrores da sociedade para todo o Brasil.
A conquista do primeiro prêmio Esso deu-se pela série de reportagens “Na Fronteira do Fim do Mundo” (1965), publicada na Gazeta de Notícias do Ceará e realizada no Acre, Pará, Rondônia e Roraima. Nela, se debruçou sobre as problemáticas de um país aparentemente esquecido pelo Poder Público, em que o trabalho nos seringais trazia aspectos de escravidão, solidão e miséria.
No ano seguinte, o nome de Rogaciano volta a constar na premiação, contudo sendo condecorado com menção honrosa pela série de reportagens “Boa esperança da miséria”. Assim como o trabalho laureado anteriormente, este, veiculado pelo periódico A Província do Pará, também possuía um viés de cobrança ao Poder Público e de denúncias sobre a situação miserável que viviam comunidades interioranas nas divisas do Maranhão e do Piauí.
Foi em 1967, contudo, que o jornalista figurou novamente como vencedor da láurea. Na conta, mais uma série de matérias, pela Gazeta de Notícias do Ceará: “No mundo amargo do açúcar”, na qual denunciava os horrores vivenciados por trabalhadores nos canaviais pernambucanos.
Naquele mesmo ano, Rogaciano também concorreu a um prêmio na categoria Informação Científica, com a matéria “O evangelho da monstruosidade”, que investigava uma missão presbiteriana responsável por esterilizar mais de 3 mil mulheres nas regiões do Norte e Nordeste brasileiro. As matérias contavam com depoimentos fortes, que chocaram toda a sociedade da época.
Relevância
Mais importante nome da cantoria cearense em atividade, Geraldo Amâncio escreveu três estrofes em homenagem ao poeta neste centenário, driblando os impedimentos presenciais da pandemia. A última delas inicia assim:
“Ninguém é como ele era,/ No raciocínio humano,/ um outro Rogaciano/ um ser humano não gera./ O Nordeste não espera,/ a natureza não cria”.
Corroborando com o cantador, Helena Roraima Leite enlaça tantas conquistas do pai em fala inspirada, em que rememora os passos dados por Rogaciano Leite em tantas estradas culturais, sobretudo em solo alencarino.
“Pensando nos cearenses, a relevância de se conhecer mais sobre Rogaciano Leite é a mesma de se descobrir os encantamentos da Terra da Luz, vistos pelo olhar de um poeta. Saber como esse pernambucano chegou no Ceará, o que ele viu nesse povo, por que escolheu essas terras para formar sua família, qual foi seu legado para o desenvolvimento do Nordeste e para a cultura do Estado – o que lhe rendeu a homenagem de ter seu nome em uma das principais avenidas de Fortaleza: tudo isso fará com que o cearense descubra um pouco mais da sua terra e da importância de ser Nordestino nas terras de Alencar”.
Paixão de ser daqui já trazida por Rogaciano em crônica de 1946, na qual escreve: “Já estou firmando no Ceará e, mesmo que me botem pra fora, eu não saio. Fico e fico mesmo”.