Cearense traduz obras de Jon Fosse, vencedor do Nobel de Literatura, direto do norueguês

Nascido em Fortaleza, Leonardo Pinto Silva é um dos tradutores da obra do norueguês Jon Fosse no Brasil

Escrito por
João Gabriel Tréz joao.gabriel@svm.com.br

Quando o então adolescente Leonardo Pinto Silva saiu de Fortaleza para passar um ano na Noruega como intercambista, ele não esperaria que, 35 anos depois, seria tradutor da obra de um autor norueguês premiado com o Nobel de Literatura

Formado em Comunicação Social pela Universidade Federal do Ceará, Leonardo atua no ramo da tradução há mais de 20 anos vertendo ao português livros do país europeu, tendo recebido um prêmio como tradutor de não ficção de 2022 pelo trabalho em prol da literatura norueguesa no Brasil. Mais recentemente, assina a tradução de obras do escritor Jon Fosse, vencedor da importante premiação concedida anualmente pela Academia Sueca. 

Intercâmbio e contato com o idioma

Aos 17 anos, antes de entrar na UFC e após concluir a formação no Colégio Marista Cearense, o hoje tradutor parou “por puro acaso” na Noruega. Entre 1988 e 1989, morou na ilha de Karmøy, localidade ligada à cidade onde Fosse nasceu em 1959, Haugesund. 

O ano de 1989, inclusive, foi aquele no qual o autor lançou o romance “A casa de barcos”, que marcou o início do sucesso dele — anteriormente conhecido pela poesia, dramaturgia e música — na prosa. “Não sabia nem quem era o Fosse naquela época. Nem o mundo sabia”, brinca Leonardo em entrevista ao Verso por telefone. 

Em outra coincidência entre as trajetórias de autor e tradutor, a edição brasileira da obra chegou às livrarias em março deste ano, pela editora Fósforo, com tradução feita pelo cearense. Apesar dos sucessivos acasos nas trajetórias, o cruzamento dos dois só veio em 2023, quando “Brancura” (também da Fósforo) foi lançado no Brasil com tradução de Leonardo.

Questionado se, antes de ir para a Noruega, tinha alguma relação inicial com a área na qual atua hoje, o cearense atesta: “Com literatura, sim. Com tradução, nunca imaginei”. Sobre contato com o idioma do país, menos ainda.

“Sabia inglês, espanhol e tinha estudado alemão, mas norueguês não. Cheguei lá e não sabia dizer nada”, lembra. “Mas, quando imerso num contexto — e com 17 anos, evidentemente —, você adquire a língua muito rápido, isso em qualquer país. Se for muito diferente, esse processo pode demorar um pouco mais, mas é inevitável”, aponta.

Mesmo que o contato com a língua tenha ocorrido por um período específico de um ano, Leonardo aponta: “O idioma ficou”, ainda que menos utilizado no cotidiano na volta ao Brasil. Por isso, sem pretensões, ele passou a se apresentar para editoras como falante de norueguês e propondo traduzir obras dele para o português.

Início da atuação na tradução

Em 1995, por exemplo, a editora Companhia das Letras lançou no Brasil “O mundo de Sofia”, romance do norueguês Jostein Gaarder, a partir da tradução alemã “porque não tinha tradutor do norueguês no Brasil”, explica Leonardo. 

“Escrevi para a Companhia me apresentando, ‘falo a língua, da próxima vez a gente pode testar’ e eles me mandaram um livro para fazer uma amostra de tradução. Depois, me mandaram outro, que foi a primeira tradução que fiz, mas não era profissional ainda”, reconta. A obra de estreia foi “Na trilha de Adão — Memórias de um filósofo da aventura”, lançada em 2000.

Por conta da profissão que ainda exercia, o jornalismo, acabou se mudando para o Rio de Janeiro e, depois, São Paulo, perdendo contato com a tradução. Quando a Companhia das Letras quis lançar uma edição comemorativa de “O mundo de Sofia” com tradução direta do norueguês, cujo lançamento foi em 2012, conseguiu contatar novamente Leonardo para que ele fizesse o trabalho.

“Fiz a tradução a partir do original e foi se encadeando um livro no outro, fui me profissionalizando. O jornalismo foi se afastando de mim e pude me dedicar quase que exclusivamente à tradução”
Leonardo Pinto Silva
tradutor

Obras como "Minha luta 1 — A morte do pai" (2015, ed. Companhia das Letras), de Karl Ove Knausgård; "Uma casa de bonecas" (2018, ed. Moinhos), de Henrik Ibsen; e "O castelo de gelo" (2023, ed. Todavia), de Tarjei Vesaas, se somaram à trajetória do tradutor.

“Brancura” marca primeira tradução de Fosse feita pelo cearense 

Fosse, no entanto, só chegou mais recentemente a Leonardo — e ao mercado editorial brasileiro no geral. “Mais ou menos em 2015, ele já era considerado um sério candidato ao prêmio Nobel de Literatura, todo mundo no mercado já sabia, tanto que em 2015 saiu pela editora Tordesilhas um livro dele chamado ‘Melancolia’, que não chegou a ser traduzido do norueguês”, contextualiza.

Apesar das expectativas, o Nobel só foi outorgado ao norueguês em 2023, ano em que chegaram ao Brasil “É a Ales” (ed. Companhia das Letras, tradução de Guilherme Silva Braga) e “Brancura” (ed. Fósforo), primeira tradução de Fosse feita por Leonardo.

Após “A casa de barcos”, o cearense irá assinar a tradução de coletâneas de poesias e textos teatrais do escritor, além de “Septologia”, “que é o grande livro do Fosse e que chancelou o Nobel”, como conta Leonardo. A obra, que tem mais de 1200 páginas, está prevista para ser lançada no Brasil no ano que vem.

Neonorueguês e torção de normas gramaticais de Fosse são desafio para tradução

O cearense destaca o trabalho como a “chancela” para a entrega do Nobel a Fosse por lembrar que a premiação é, também, um instrumento geopolítico e simbólico para além de literário.

“Fosse escreve numa variante minoritária do norueguês, então existiu também essa preocupação de dar destaque à variante minoritária de um idioma minoritário. 20% da Noruega fala o neonorueguês, que não é um idioma tradicional de livro”, explica Leonardo.

“Os grandes centros urbanos falam a variante majoritária, a Bokmål, que quer dizer exatamente ‘linguagem dos livros’. É um cara que escreve livro em uma língua que não é a língua dos livros”, define.

Em termos resumidos, a Noruega viveu um período de destaque na era viking até sofrer com a peste negra, perder um quinto da população e ficar sob influência em especial da Dinamarca ao longo dos séculos. 

Tais movimentos históricos se refletiram no idioma do país, com raiz viking, milhares de dialetos falados por populações mais pobres que moravam isoladas na costa norueguesa e influência direta da língua dinamarquesa

Eventualmente, se consolidou na Noruega essa última, que hoje é o Bokmål — “é o mesmo dinamarquês escrito, mas falado de maneira muito diferente”, explica Leonardo —, e se criou no país o chamado neonorueguês (Nynorsk) — criado pelo filólogo Ivar Aasen a partir de uma espécie de “média” entre os dialetos falados pelos povos isolados da Noruega e com raiz da língua viking. 

O país europeu tem as duas como línguas oficiais, com ambas constando em documentos oficiais, cédulas, livros didáticos, programas de televisão e mais instâncias 

O Nynorsk, ensina o tradutor, tem forte oralidade. “A língua em que o Fosse escreve não é um registro urbano, que é o Bokmål, normatizado. O Nynorsk é um registro oral com forte marcação rural, o que torna a tradução mais difícil porque nunca dá para tomar pelo valor de face aquilo que é expresso. Às vezes, o personagem está dizendo uma coisa e o que ele diz é exatamente o contrário daquilo”, avança.

Entre marcas da escrita em neonorueguês, há o uso de artigos antes de nomes, algo incomum no Bokmål, e coloquialidade. “Meu avô era do interior do Ceará, do Iguatu. Era como se eu estivesse conversando com aquele cara”, relaciona.

Outra correlação proposta por Leonardo para explicar melhor Fosse é aquela traçada entre o norueguês, o português José Saramago e o brasileiro Guimarães Rosa. Nas mais de 1200 páginas de “Septologia”, o cearense destaca, há somente uma pontuação: um ponto final, na conclusão do livro.

“Ele tem essa característica, que o Saramago e o Guimarães Rosa também tinham, que é a de torcer a língua”, aproxima. “Se você pega livros anteriores, até vê uma interrogação aqui, uma vírgula ali, uma marcação de diálogo, mas depois ele abandona. Não é só a questão da oralidade, é o desvirtuamento de um acordo ortográfico, gramatical, do consenso em que idiomas se baseiam para poderem funcionar”, avança.

“É muito complicado fazer esse tipo de comparação, às vezes é leviano, mas é o que mais esclarece. O Fosse faz com a língua o que Guimarães fez aqui e Saramago fez em Portugal”, reforça Leonardo.

Valorização da tradução

Os desafios postos pela forma com que Fosse escreve só reforçam a defesa que Leonardo faz do ofício da tradução. “Tradutor aqui no Brasil, e em geral, normalmente não aparece. Quando aparece, é porque fez uma bobagem”, brinca.

“Hoje está mudando. Editoras como a Fósforo não tem uma postagem sobre qualquer livro que não vá o nome do tradutor junto, da capista, eles tem um critério absurdo”, destaca. 

“Tradutor é coautor, tem que ser creditado na capa, junto com o autor. Isso em mercados mais maduros é praxe. Não é aqui, porque quando você começa a valorizar o tradutor como ele deve ser valorizado, tem que valorizar financeiramente. Se valorizar vai encarecer o livro”
Leonardo Pinto Silva
tradutor

As realidades sociais e econômicas dos dois países são marcadamente distintas, indo das questões sociais aos formatos dos mercados editoriais. No país europeu, Leonardo compartilha que há proteção do preço dos livros e políticas internas e externas de fomento, incluindo o subsídio da tradução de obras para outras línguas.

O cearense está inclusive em viagem para a Noruega neste mês de maio, para participar de um festival literário, uma residência e, ainda, deve ter um encontro com Fosse

Pelas políticas do país, tradutores das obras em norueguês ainda têm um papel ativo na mediação entre a literatura de lá e os outros países. “O escritório de fomento à literatura, chamado Norla, faz curadoria de títulos para o mercado externo e estimulam a gente a fazer amostras de tradução para as editoras”, explica.

“Lá na Noruega, um país com cinco milhões de pessoas, não é incomum ter uma tiragem de centenas de milhares. Aqui no Brasil, com 220 milhões de pessoas, se você tirar mil exemplares, pode festejar”, aponta.

“A Noruega é um país que lê e tem esse mercado literário evoluído porque atendeu questões básicas ou atendeu questões básicas porque tem o mercado de livro evoluído e pessoas têm educação, livro e cultura? O que é causa e o que é consequência?”, instiga o tradutor.

“Claro que uma coisa influi a outra. O que sei dizer é que são coisas interdependentes. Para você ter uma sociedade evoluída, é preciso cultura, literatura, leitura”, sustenta.