Cearense conquista público nas redes sociais ao contar experiências de quem vive em interior raiz

De Solonópole para o mundo, Davi Zahir sonha em ocupar o palco com espetáculo sobre a própria vida e os costumes da cidade natal, num misto de intimidade e irreverência

Dentre os pouco mais de 18 mil habitantes de Solonópole – município cravado no sertão cearense, a 229 quilômetros de Fortaleza – um tem sonho bonito: conquistar o mundo por meio da arte. E é desejo forte. “Quero que estejamos presentes em todos os lugares, representando nossa cultura e nosso povo em todos os cantos do planeta”.

Talvez não demore a cumprir o feito. Aos 19 anos, o ator, produtor, multiartista, influencer e estudante de Teatro na Universidade Federal do Ceará, David Zahir, já tem agenda lotada de planos. O maior deles, no momento, é estrear “Inconsciente”, espetáculo no qual narra passagens da trajetória pessoal e do cotidiano na cidade de origem.

Essa rotina na localidade, inclusive, conquistou o público muito antes da montagem. Entre 2014 e 2016, diretamente do sítio Benevolência, no distrito de São José, ele foi o pioneiro em Solonópole a ter um canal no YouTube. Nessa travessia, acumulou mais de oito mil inscritos e quase um milhão de visualizações – feito notável.

Diversos nichos da internet foram explorados pelo jovem ao longo dos anos. De início, momentos do dia a dia – de forma a se conectar com os conterrâneos. Aos poucos, outros vieses. “Um vídeo que marcou o início do canal foi ‘Vizinha fofoqueira’, onde compartilhei uma história real que muitos puderam se identificar. Afinal, como digo no vídeo, ‘me diga quem é do interior e não tem uma vizinha fofoqueira?’”, gargalha.

Para ele, essa abordagem mais próxima foi fundamental para conquistar a atenção das pessoas, além da simplicidade e da humildade evidenciada nas produções. Daí para atravessar outros terrenos foi um pulo. Reality shows, novelas e músicas entraram no radar de comentários do youtuber e nunca mais saíram.

“Fiquei conhecido entre os fãs de artistas que eu admirava, como a Joelma, e isso ajudou a expandir meu alcance. O segredo foi manter-me fiel a mim mesmo, no que eu acreditava, enquanto explorava novos temas e formatos que despertassem o interesse das pessoas”.

Arte na infância raiz

Correndo pelas ruas, tomando banho de açude, sendo moleque cheio de energia, carisma e amor singular pela cultura, Davi diz ser fascinado por festas juninas desde pequeno. A tradição marcou os primeiros passos no fazer artístico do jovem e continua bandeira. A paixão mora nos detalhes.

“Até a maneira que a gente se expressa é única. As gírias malucas, tipo ‘marimba’ – que significa ‘besteira’ e a gente usa pra tudo – além de toda uma bagagem, foram essenciais para criar uma identidade artística única, cheia de referências do meu lugar de origem. A coisa é que, no interior, as oportunidades são meio escassas, então sempre tive esse desejo enorme de encarar o mundo lá fora, mas sem esquecer minhas raízes”, conta.

Na realidade, quer mesmo levar o nome do lugar para onde for possível. Solonópole, segundo ele, pode ser pequena no mapa, mas ocupa lugar gigante no coração e na história desse cearense destemido. Embora viver no município tenha mostrado ao artista a face mais desafiadora da existência, é grato a ele e pretende reverenciá-lo.

A estrada não foi florida. A infância de Davi foi marcada por solidão, agressão e falta de afeto. Cresceu em ambientes difíceis, muitas vezes na casa de outras pessoas, entre o mato e a rua. Ali, ao observar aqueles personagens lutando pelos próprios sonhos – muitos vindo de lugares semelhantes aos dele – inspirava-se profundamente. 

Foi o que o não fez desistir da vontade de estar no palco. Fã de novelas como “Cheias de Charme”, “Rebelde” e “Cúmplices de um Resgate”, sentia que estava destinado a agir feito aqueles rostos que enchiam a televisão. “Acredito que essa vocação surgiu da minha necessidade de sonhar e encontrar um escape para as dificuldades que enfrentava”, reflete.

“No momento, estou fazendo isso: dando voz a uma criança que foi extremamente machucada, humilhada e silenciada. Estou realizando um dos meus maiores sonhos, em processo de montagem para o meu novo espetáculo”. É o já citado “Inconsciente - Uma viagem à minha criança interior”.

A montagem aborda assuntos como LGBTfobia, agressões sofridas pelo padrasto durante cinco anos e abuso psicológico. Ao mesmo tempo, em meio ao turbilhão de angústias, há leveza, com referências de artistas da própria família responsáveis por mostrar a ele desde cedo que era possível fazer arte no lugar onde se vive.

Entre os nomes frescos na memória, estão a escritora Marla Soraia; o tio, Josi, do qual vai interpretar no espetáculo uma música chamada “Saudades do sertão” – homenagem também ao avô seresteiro; e ídolos como Joelma, Luiz Gonzaga, Xuxa e bandas de forró.

A montagem terá direção de Samanta Oliveira e elenco do coletivo Sinestesia. A previsão de estreia é no segundo semestre deste ano. “Ainda estamos procurando apoiadores e marcas que acreditem no projeto para levá-lo adiante. Um documentário e um curta-metragem também estão sendo planejados. Uma história que mistura a realidade e o inconsciente em um cenário que respira o interior cearense”.

Apostar no sonho

Questionado sobre se existe uma receita para alguém fora da Capital e dos principais centros urbanos se projetar artisticamente, Davi não titubeia: depende de oportunidades e da dedicação de cada um. Ele sonha com o dia em que não será necessário sair do próprio lugar para seguir o coração, como quando em 2022 se mudou para Fortaleza a fim de estudar e dar continuidade ao que move a vida. 

“É crucial investir na arte em regiões do interior, criando centros culturais. Enquanto isso não acontece, acredito que vale a pena arriscar tudo pelos nossos sonhos. Só temos uma vida para viver, então devemos colocar energia e dedicação no que queremos ser. Aprenda a conviver com o medo, pois ele sempre estará presente. Se arrisque, se jogue! Acredito no seu sonho, na sua intuição. Viva o que você deseja porque ninguém vai viver por você”, aconselha.

E ele quer viver o quanto puder. No plano pessoal, almeja evoluir como ser humano, ajudar a família e explorar as belezas do Brasil por meio de viagens. Profissionalmente, o objetivo é concluir a faculdade de Teatro, ainda está no terceiro semestre. “Inconsciente” também surge como meta, claro: é o espetáculo de uma vida.

“Além disso, pretendo voltar para a internet e criar conteúdo regularmente em breve. Tenho o sonho de trabalhar com marcas e publicidade. Além disso, quero desenvolver outros projetos que tragam a cultura cearense aos palcos, destacando as riquezas culturais da nossa região”.