Casas de Tomie Ohtake e Chu Ming Silveira são abertas ao público pela primeira vez em mostra de arte

Marcos da arquitetura brutalista de São Paulo, residências das artistas plásticas se transformam em galerias e recebem obras de artistas consagrados e novos talentos do Brasil e do mundo

Quem viaja para São Paulo encontra, em vários pontos da cidade, um sem-número de museus, institutos e centros culturais com programação e obras de arte de movimentos artísticos diversos. Nos meses de agosto e setembro deste ano, porém, dois pontos inusitados se transformam em novas galerias: as casas onde viveram Tomie Ohtake e Chu Ming Silveira, duas grandes artistas plásticas asiático-brasileiras que imigraram para o Brasil no século passado e deixaram, por aqui, um amplo legado.

A transformação das residências em museus temporários é iniciativa da terceira edição da mostra de arte e design Aberto, que já realizou exposições nas casas de Oscar Niemeyer e Villanova Artigas e tem como objetivo conectar grandes nomes da arquitetura e do design brasileiros a artistas contemporâneos.

A edição de 2024 da mostra foi inaugurada no último sábado (11) e segue aberta à visitação até 15 de setembro.

Localizadas nos bairros Campo Belo e Real Parque, as duas casas chamam atenção pelos projetos arquitetônicos brutalistas, executados entre o fim dos anos 60 e o começo da década de 70. A casa de Tomie foi projetada por seu filho, Ruy Ohtake, para acolher a família e, futuramente, o ateliê da mãe. Já a casa de Chu Ming foi projetada pela própria designer.

Com curadoria de Filipe Assis, Kiki Mazzucchelli e Claudia Moreira Salles, a Aberto 3 é a primeira edição da mostra a reunir duas casas de artistas diferentes. Dentro das residências, o público confere cerca de 150 obras de nomes consagrados e novos talentos, como Adriana Varejão, Barrão, Beatriz Milhazes, Fernanda Galvão, Francisco Brennand, Luísa Matsushita, Luiz Zerbini e Sophia Loeb, além de peças de mobiliário projetadas pelas famílias Ohtake e Chu.

Idealizador da mostra, o curador Filipe Assis explica que a escolha das duas casas foi uma feliz coincidência. Após decidir realizar a exposição na casa de Chu Ming – que tem sido utilizada como residência particular do filho da designer, Alan Chu –, surgiu a oportunidade de também transformar a casa-ateliê de Tomie Ohtake em uma galeria de arte. 

Esta, por sua vez, estava fechada desde a morte da artista, em 2015, “como se ela tivesse saído para ir ao banheiro”, conta o neto de Tomie, o arquiteto Rodrigo Ohtake – mas já era desejo da família abrir a casa ao grande público.

“Não dava para deixar [uma das casas] para depois, porque as histórias são muito conectadas. Ia acabar dando uma sensação de déjà-vu”, explica Filipe. A proximidade entre o brutalismo das casas e a biografia das artistas – mulheres imigrantes, de origem asiática, que deixaram um grande legado e tiveram reconhecimento tardio ou póstumo – também foi decisiva para pensar no uso das duas residências durante a mesma exposição.

“O que eu espero das pessoas quando elas visitam as casas é que elas percebam tanto as diferenças quanto as similaridades”, sugere Filipe. Esses detalhes podem ser vistos na produção artística e na arquitetura da casa, que indicam como as artistas viviam e trabalhavam, por exemplo, mas também na repercussão de suas obras. “Tomie era super reconhecida, é quase que uma homenagem. Chu Ming é uma redescoberta”, completa Filipe.

Casa-ateliê de Tomie Ohtake: história, legado e afeto

Erguida em 1968, a casa-ateliê de Tomie Ohtake foi um dos primeiros projetos arquitetônicos de casas de Ruy Ohtake, filho da artista. Com 750m², a casa surpreende pelo tamanho e encanta pela brincadeira que luz e sombra empreendem ao adentrarmos cada cômodo. Além das obras expostas, é possível conhecer, também, um pouco da história da japonesa que chegou ao Brasil aos 20 anos e se consagrou pelas gravuras, pinturas e esculturas abstracionistas.

Ao entrar no salão principal, as paredes brutalistas deixam os visitantes na penumbra e, ao mesmo tempo, realçam as cores vibrantes de algumas das paredes, evidenciando as obras de arte ali alocadas temporariamente, que saltam aos olhos. 

Ao todo, são mais de 100 peças, algumas em homenagem à Tomie, como uma pintura da artista japonesa feito pela artista Maria Klabin e o Móbile Tomie, feito por Laercio Redondo em colaboração com Birger Lipinski, uma instalação que traz aspectos que relacionam com a vida e a obra da artista.

O concreto, porém, também é memória. Em diversos cômodos da casa, móveis fixos feitos com o material demonstram como era a rotina da família, a exemplo da mesa da sala, onde os almoços de domingo – recheados com comida baiana e macarrão japonês – aconteceram por 40 anos. Há também algumas camas de concreto nos quartos diminutos, que reforçavam a ideia de que não se devia passar mais tempo do que o suficiente ali: a casa era uma praça e devia ser ocupada por completo.

Andando do salão principal em direção ao jardim, um grande ateliê – o último utilizado por Tomie – se ilumina, com a luz natural que entra das portas de vidro e da claraboia e se conecta com a natureza do jardim da casa. A maioria das plantas da casa, aliás, foi plantada pela própria Tomie, com apoio do artista plástico e paisagista Burle Marx, que doou várias mudas para a família do amigo Ruy.

“Era uma coisa muito bonita”, lembra Rodrigo, neto de Tomie. “Porque a casa vai clareando e quando você chegava no ambiente mais claro, você visualizava a Tomie esperando você. Era um percurso bonito, e ela estava sempre lá, sorrindo”, conta. 

O ateliê funcionou como o principal refúgio de Tomie entre 1994 e 2015, ano em que a artista partiu. Além de obras de diversas fases de sua carreira – incluindo o último quadro pintado pela artista, aos 100 anos –, o espaço reúne objetos, tintas e pincéis que foram usados por ela, em uma curadoria realizada pelo Instituto Tomie Ohtake. 

O local também expõe três peças de mobiliário recém-lançadas de Ruy e Rodrigo Ohtake, evidenciando o inegável diálogo entre a arte da avó e a arquitetura de pai e filho. Há, ainda, a “Parede dos Amigos”, com obras feitas por amigos artistas especialmente para Tomie.

Depois da mostra Aberto, segundo Rodrigo Ohtake, a casa de Tomie deve seguir acessível ao público, mas em novo formato. Ela será cedida para o Instituto Tomie Ohtake e deve receber de duas a três exposições por ano – cumprindo o desejo da artista de estar sempre em diálogo com outros artistas.

“É interessante porque a Tomie sempre gostou de ficar próxima dos jovens. Ela sempre teve muita amizade com artistas jovens. Ver a obra dela com uma geração, duas, três gerações abaixo é algo que sempre a entusiasmou, então, pra gente, ver isso aqui é muito bacana”, destaca Rodrigo.

Chu Ming Silveira: soluções de design e autoralidade

Se o nome de Tomie Ohtake se tornou um dos mais conhecidos da arte moderna brasileira, não é exagero afirmar que a identidade da chinesa Chu Ming Silveira se manteve conhecida apenas em círculos restritos de especialistas e pesquisadores de arte e design.

Com seu falecimento precoce em 1997, aos 56 anos, a artista chinesa teve sua produção artística bruscamente interrompida – mas mantém um legado que une funcionalidade e inovação.

Seu principal projeto foi feito em 1971, em meio às burocracias de um escritório de projetos, quando trabalhava na Companhia Telefônica Brasileira (CTB): o orelhão. Pensado em dois formatos, os protetores telefônicos Chu I e Chu II deram origem a uma das peças de mobiliário urbano mais icônicas do Brasil, e chegaram até a ser utilizados em outros países, como a Colômbia.

O protótipo do orelhão, pensando como solução de acústica e privacidade para o telefone, é uma das peças que ocupam a casa da artista, também projetada por ela, no bairro do Real Parque – o único projeto arquitetônico de Chu na capital paulista.

Unindo espaços de compressão e expansão e misturando o peso do concreto à leveza do vidro e a elementos naturais, como plantas e pedras, a casa recebe 51 obras, quase todas de mulheres que, como ela, produziram suas maiores obras já na maturidade.

“A gente tentou privilegiar mulheres tardiamente reconhecidas pela história da arte, nas suas carreiras ou até postumamente, por um diálogo com a Chu Ming, que não é um nome conhecido. Com essa exposição, a gente espera que ela seja valorizada”, afirma o curador Filipe Assis.

Na residência, além do trabalho da designer, se destacam obras de artistas como Lygia Clark, Carmen Herrera, Sheila Hicks, Wanda Pimentel e o raríssimo Aparelho Cinecromático de Abraham Palatnik. Há, ainda, duas reinterpretações do orelhão feitas por Alan Chu, filho de Chu Ming, em homenagem ao trabalho da mãe.

Diferentemente da casa-ateliê de Tomie, a residência de Chu Ming hoje é ocupada pela família e serve também como escritório de advocacia de Clóvis Silveira, viúvo da artista. Por isso, a Aberto3 se consagra como oportunidade única para visitar o marco arquitetônico – ainda que alguns ambientes sigam reservados aos familiares.

Serviço
Mostra ABERTO3
Quando: De 11 de agosto a 15 de setembro
Onde: Casa Ateliê de Tomie Ohtake (rua Antonio de Macedo Soares, 1,800 - Campo Belo, São Paulo) e Residência de Chu Ming Silveira (rua República Dominicana, 327 - Real Parque, São Paulo)
Horário de visitação: Quarta-feira a domingo, das 10h às 18h (última entrada às 17h)
Ingressos: Valor por casa - de quarta a sexta-feira, R$ 60 (inteira) e R$ 30 (meia-entrada); aos sábados e domingos, R$ 80 (inteira) e R$ 40 (meia-entrada) | Vendas neste link

*A repórter viajou a convite da ABERTO