Após dois anos da estreia mundial no Festival de Berlim, o longa "Marighella" será finalmente lançado no Brasil no dia 4 de novembro.
A cinebiografia do poeta baiano Carlos Marighella (1911-1969), guerrilheiro de esquerda que lutou contra a ditadura militar, protagonizou imbróglios envolvendo a exibição em território nacional, que deveria ter acontecido em novembro de 2019, mas foi adiada até 2021.
A demora na liberação de verba pela Agência Nacional do Cinema (Ancine) e a crise sanitária causada pela pandemia da Covid-19, atrasou em dois anos.
"É inacreditável que o filme só vá estrear agora. Em Berlim, foi aplaudido de pé por dez minutos; Seu Jorge [que interpreta Marighella] já ganhou prêmios na Itália e na Índia. Mas é um filme feito para o Brasil. A primeira estreia foi cancelada pela Censura. Os pedidos que a O2 [produtora] fez à Ancine eram absolutamente normais, negados assustosamente numa época em que Bolsonaro atacava o cinema nacional", declarou Wagner Moura, que estreia como diretor no longa, ao jornal O Globo.
Além de Seu Jorge, o elenco conta ainda com Adriana Esteves, Bruno Gagliasso e Humberto Carrão.
Gravado na Bahia, em São Paulo e no Rio de Janeiro, o longa-metragem é baseado no livro "Marighella o Guerrilheiro que Incendiou o Mundo", do jornalista e escritor Mario Magalhães, e mostra os últimos anos de vida do guerrilheiro, morto em uma emboscada em 1969.
Magalhães recentemente esclareceu que, apesar de o pai ser italiano, Marighella não era branco, e foi vítima de racismo em diferentes episódios. A mãe do militante era neta de africanos escravizados.
Reação da crítica ao filme
No início deste ano, um texto publicado no jornal norte-americano The New York Times elogiou a produção brasileira. A conceituada crítica Devika Girish, do Film Coment e do The British Film Institute, entre outros, declarou que “Marighella” é mais que um filme biográfico histórico.
“É uma provocação. E também fascinante”, atestou Girish.
Ela comparou o longa à “Batalha de Argel”, do italiano Gillo Pontecorvo (1966), épico ambientado na década de 1950 sobre a luta do povo argelino pela independência do governo francês.
Na época da premiére mundial, a revista especializada norte-americana The Hollywood Reporter disse que, apesar da obra possuir uma visão de "nós contra eles", funciona como entretenimento. "Empolgante", "altamente seguro" e com "elenco fantástico", escreveu o crítico Stephen Dalton.
Já para a publicação britânica Screen Daily, "Marighella" se parece mais com uma cinebiografia de ação do que um longa de teor político.
"Em uma época de revolta, 'Marighella' deve estimular o debate sobre a natureza e o efeito da militância política, enquanto sua intensidade de suspense e uma atuação convincente de Seu Jorge fornecerão influência internacional sobre a arte", publicou o jornalista Jonathan Romney em 2019.
O jornal alemão de esquerda Die Tageszeitung classificou o filme como raso e que exagera em querer transformar Marighella em herói. Segundo o periódico, as cenas de tortura são pesadas e a trama ignora, por exemplo, o impacto do governo norte-americano nos eventos ocorridos na América Latina na época.
"Este filme não conhece contradições", escreveu o crítico Andreas Fanizadeh. "O roteiro não conta que o golpe militar no Brasil primeiramente teve forte apoio da população. Porém, não dá pistas de por que isso aconteceu e por qual motivo a resistência e as forças democráticas eram tão fracas."
Quem foi Carlos Marighella
Nascido na capital baiana, Salvador, em 5 de dezembro de 1911, Carlos Marighella era o irmão mais velho dos oito filhos de Maria Rita dos Santos, neta de africanos escravizados, e de Augusto Marighella, imigrante italiano radicado na Bahia, conforme um artigo escrito pelo historiador Ricardo José Sizilio.
Apesar de terem morado em uma região pobre da cidade, a Baixa dos Sapateiros, a formação profissional do chefe da família, que era mecânico e habilitado para consertar navios, pode ter possibilitado que vivessem em uma condição social mais confortável.
Vida escolar e prisões
Carlos iniciou o ensino secundário no Ginásio Carneiro Ribeiro, transferindo-se no 4º ano para Ginásio da Bahia, única instituição pública do segmento de ensino à época, onde concluiu o nível escolar. Segundo o pesquisador, nessa época ele ficou conhecido por uma parte do corpo estudantil após responder em verso uma prova de física.
Por ter estudado um ano a mais no secundário, Marighella conseguiu se bacharelar em Ciências e Letras, o habilitando para docência. Mesmo sem trabalhar em escolas formais, atuou como professor particular, enquanto cursava Engenharia Civil na Escola Politécnica da Bahia.
Em 1932, um ano após iniciar no ensino superior, o então estudante foi preso pela primeira vez. Junto a mais de 500 pessoas, maioria de discentes, ele participou da ocupação da Faculdade de Medicina da Bahia contra a ruptura da ordem institucional realizada por Vargas em 1930.
Dois anos depois, foi advertido e suspenso do curso de Engenharia so ba suspeita de ter furtado provas e documentos da Politécnica, além de ter se rebelado contra o inquérito que o investigava.
Militância
No mesmo ano em que foi impedido de frequentar o ensino superior, Marighella ingressou no Partido Comunista do Brasil (PCB), onde permaneceu por 30 anos.
Em 1935, se mudou para o Rio de Janeiro, onde continuou a exercer atividades ligadas ao partido. No ano seguinte, foi preso novamente, devido à atuação política, e passou mais de um ano encarcerado, período em que foi torturado.
Em 1937, foi enviado pelo PCB à São Paulo, onde novamente foi perseguido politicamente e mais uma vez detido. O poeta permaneceu privado de liberdade por cerca de seis anos, saindo em 1945 em razão do processo de abertura política que garantiu anistia aos presos políticos.
Após ter sido anistiado, Marighella retornou à Bahia, após quase dez anos. Na condição de dirigente nacional do PCB, aos 33 anos, concorreu ao cargo de deputado federal constituinte e tornou-se o primeiro comunista eleito no estado nordestino. No entanto, os mandatos dos parlamentares de esquerda foram cassados em janeiro de 1948, como consequência da extinção do registro partidário do PCB, em maio do ano anterior.
Com a ilegalidade do partido e as perseguições empreendidas aos comunistas no período da Guerra Fria, Marighella viajou, entre outros países, para China e para União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), onde viu de perto o funcionamento das nações comunistas.
Com o golpe civil-militar no Brasil, em 1964, ele entrou em desacordo com os rumos do PCB, que julgava ser incapaz de apresentar uma alternativa de organização capaz de derrotar o regime autoritário vigente.
No mês seguinte ao golpe, Marighella foi baleado em um cinema e preso. Após conseguir a liberdade, publicou no ano seguinte o livro "Por que resisti à prisão", em que relata o encarceramento recente, questões da vida, da notória insatisfação com os rumos do PCB, além da necessidade de enfrentar o autoritarismo vigente à época.
Ruptura e execução
Outra experiência comunista que Marighella conheceu de perto foi a da Revolução Cubana, chegando a participar da Conferência da Organização Latino Americana de Solidariedade (OLAS), 1967, fator determinante para a ruptura com o PCB, por qual militou por mais de três décadas.
Em seguida, fundou a Ação Libertadora Nacional (ALN), uma das principais organizações de resistência e combate à ditadura militar. Devido ao histórico de militância, à publicação de livros que incentivavam a resistência e orientavam as ações táticas ousadas e desafiadoras, Marighella foi considerado o inimigo número um da ditadura.
Mesmo tendo plena consciência dos riscos existente contra a sua vida ao ficar no Brasil, ele optou por permanecer no país, combatendo a ditadura ativamente, com armas nas mãos, sendo executado em uma emboscada no dia 4 de novembro de 1969.