Canja é servida como ‘entrada’ em aniversários de Maranguape; conheça o costume e de onde vem

Curiosa tradição gastronômica perpassa gerações, aproxima pessoas e consegue até gerar renda no Município

Esqueça os salgadinhos. Antes de cantar os parabéns, a canja é o primeiro quitute servido nos aniversários em Maranguape. O município da Região Metropolitana de Fortaleza incorpora o costume há gerações e se orgulha do feito. Virou tradição. Estranho seria ninguém passando com uma bandeja repleta de copos descartáveis e o caldinho dentro.

À boca miúda, tem um quê de estratégia. “Sempre é a primeira coisa oferecida pra forrar logo o bucho de quem chega e, consequentemente, fazer com a pessoa já fique cheia pra comer menos as outras coisas”, confidencia Morgana Camila aos risos.

A criadora de conteúdo maranguapense diz que lembra da prática “desde que se entende por gente”. Atravessou tanto as primeiras festinhas, ainda na infância, quanto as recentes comemorações – “nas minhas sempre tem que ter”. Com o celular em riste, ela apresenta os vídeos gravados nessas datas e assegura que a iniciativa é realmente forte.

Convidados ansiosos para experimentar a sopinha estendem logo a mão para pegar o copo. “Não são aquelas canjas cheias de macarrão, não. É canja branquinha”, explica. Delícia diferenciada. Na cartilha de preparo da influenciadora, precisa ter creme de leite, arroz na medida certa, frango desfiado e, para finalizar, milho-verde.

Detalhe: ninguém quer chegar atrasado na festa e perder. “Quem chega depois, antes de se servir com qualquer outra coisa, já pergunta logo por ela”, diz. Não à toa, o componente agregador do alimento. Mais que servir como “entrada”, a canja une famílias e grupos nas festividades e põe todo mundo para conversar enquanto apura o sabor na boca. É ouro.

De onde vem a prática

A origem do costume é incerta. Mas, se olharmos para práticas gastronômicas cearenses, fica fácil entender o contexto. Galinhas nos quintais são comuns em serra, sertão e litoral. Os animais, comparados a bichos “de criação”, demandam alimentação de baixo custo e espaços pequenos; logo, são protagonistas em várias receitas, dentre elas a canja.

Junto ao creme de galinha e à galinha cozida, o prato aparece em diferentes situações por todo o Ceará. Está como uma das principais opções de “sopas” em padarias e restaurantes, por exemplo. Em Jaguaribara e outros municípios do interior, é frequentemente servida em velório. Na Capital, além de refeição para curar ressaca, é encarada como alimento para pessoas doentes e com desconfortos intestinais.

“De forma geral, a canja é feita com legumes e frango, preparados de forma sequencial para dar sabor. Entretanto, receitas que ganham o caráter de comida afetiva, restauradora ou de festa, acabam incorporando modos de fazer e ingredientes diferenciados em cada família”, explica Vanessa Moreira, antropóloga e pesquisadora de culturas alimentares. 

Coordenadora de cultura alimentar e pesquisadora da Escola de Gastronomia Social Ivens Dias Branco, a estudiosa ressalta que, nesse movimento de preparação do prato, tem quem coloque creme de leite, milho-verde, ervilha, leite e arroz para dar uma encorpada, personalizando-o. Certamente, o refogado será com alho, cebola e sal, com gosto de Ceará.

Portanto, nada de confundir canja com consumê. Segundo Vanessa, há uma diferenciação entre os dois: a clarificação. “Ambos são feitas com legumes, galinha e caldo. Entretanto, no consumê, é preciso colocar claras em neves enquanto se cozinha. O método exige baixar o fogo, adicionar as claras na superfície, abrir um caminho para o fundo e retirar os pedaços que imergirem a fim de se ter um caldo translúcido, diferentemente da canja”.

No fim das contas, conforme destaca, toda comida é repleta de códigos capazes de dizer muito sobre o contexto sociocultural onde está sendo vivida. Mesmo em um Estado com verão o ano inteiro, caldos e preparações caudalosas são opções bem-vindas em muitas ocasiões. Na praia, é comum caldo de peixe, caranguejo, sururu, assim como o caldo de feijão em outras regiões. Geralmente devem ser servidos muito quentes. 

“A ideia não seria esquentar o corpo, mas comer algo quente, que disfarce a fome da ‘comida de panela’ – forma como o cearense chama uma refeição quente e de sustança. Por muito tempo, perdurando até hoje em algumas famílias, serve-se creme de galinha em festas de aniversário”, reitera a pesquisadora.

A história da canja

A verdade é que cozinhas locais, regionais, nacionais e internacionais são produtos da miscigenação cultural, fazendo com que as culinárias revelem vestígios dessa troca de saberes. A formação do gosto alimentar, assim, não se dá, exclusivamente, devido a um aspecto nutricional ou biológico. Os alimentos não são somente para comer, uma vez que a atividade é um ato social, ligado a atitudes, usos, costumes, protocolos, condutas e situações. 

“Nenhum alimento que entra em nossas bocas é neutro. A historicidade da sensibilidade gastronômica explica e é explicada pelas manifestações culturais e sociais. Elas são espelho de uma época. Nesse sentido, o que se come é tão importante quanto quando se come, onde se come, como se come e com quem se come”, divide Vanessa Moreira.

A canja, de forma específica, é considerada um dos remédios mais antigos da História. Até meados do século XVII, o primo da iguaria era um caldo grosso de arroz sem sal, muito usado para curar doenças. A receita similar a que conhecemos hoje, porém, nasceu na Índia e era chamada de “pez” ou “peya” – “bom para beber”, em sânscrito. 

Mais tarde, passou a ser conhecida por “cañji”, ou “arroz com água”, sendo muito consumida na região de Goa – colônia portuguesa de 1510 a 1961, por onde chegou ao Brasil.

A primeira menção escrita sobre o alimento está no livro “Colóquios dos Simples e Drogas da Índia”, do naturalista e médico judeu português, Garcia da Orta (1501-1568), lançado em Goa em Abril de 1563: “Nestes dias damos a comer ao enfermo leite azedo misturado com arroz, e franguos delidos em agoa deste arroz (a que elles chamão canje)” [sic].

Alimentar e mudar vidas

Além de Cultura, o caldinho também prospecta sonhos. Alexandra Sousa, 50, é prova disso. Maranguapense apaixonada por canja, já chegou a vender o quitute em uma das praças da cidade. Com o tempo, passou também a fazê-lo por encomenda, garantindo que o alimento chegasse quentinho e bem feito às mesas de aniversário.

O que era apenas comércio, virou realização. Cobrando valores diferentes por festa – a depender da quantidade de convidados – a funcionária de repartição pública faturou o suficiente para comprar móveis para a própria cozinha e alguns eletrodomésticos, otimizando o funcionamento do lar e da vida.

“Agora só faço para as festinhas de casa e para amigos. É algo muito esperado. Se não tiver, a pergunta paira no ar: ‘Tia, cadê a canja?’”, gargalha. Nesse compasso, também revela como prepara o alimento. Segundo ela, é tudo muito simples: frango com arroz; algumas verduras, a exemplo de cheiro verde, pimentão e cebola; leite e creme de leite.

Entre a tradição e a novidade, o sentimento e o paladar, a canja segue alimentando gente e convida para mais perto. Só cuidado na hora de tomar: em bom cearensês, estará “pegando fogo”.