Nomear um prédio ou espaço público, seja de qual natureza for, é também um ato de memória. Atentar-se aos nomes que figuram em equipamentos do tipo se configura, então, como um convite para refletir sobre o perfil das figuras históricas cuja lembrança é reforçada de forma oficial no Ceará e em Fortaleza.
Entre os 37 equipamentos culturais geridos pelo Governo do Ceará e pela Prefeitura de Fortaleza — recorte escolhido em levantamento feito pelo Verso —, 14 não levam nomes próprios, seja em alusão a figuras históricas ou santos.
Dos 23 que levam, 20 são batizados a partir de homens: cinco referenciam figuras religiosas, três são reconhecidos como escritores, dois homenageiam o cantor e compositor Belchior e outros três são os que homenageiam mulheres — todos, ressalte-se, ligados à Prefeitura de Fortaleza: Biblioteca Cristina Poeta, Biblioteca Infantil Herbênia Gurgel e Teatro Antonieta Noronha.
A pesquisa feita pela reportagem levou em conta os nomes completos dos equipamentos listados nos sites das secretarias da cultura do Governo do Ceará e da Prefeitura de Fortaleza
Quem são as mulheres que nomeiam equipamentos culturais
Da lista de 27 equipamentos culturais do Governo do Estado, nenhum é batizado em alusão a alguma mulher da história do Ceará. No entanto, espaços internos de alguns deles referenciam artista como a maestrina e regente Izaíra Silvino (1945-2021) — que dá nome ao foyer do TJA — e Henriqueta (1887-1964), Júlia (1889-1978) e Nenzinha Galeno (1918-1989), respectivamente filhas e neta de Juvenal Galeno, que emprestam os nomes a espaços da Casa do escritor.
No Centro Cultural Bom Jardim, também estadual, o espaço da biblioteca é nomeado a partir da líder comunitária e cordelista Cristina Poeta (1974-2017). Além dele, a artista e ativista é, também, uma das três mulheres que batiza um equipamento. Conheça ela e as outras homenageadas.
Cristina Poeta (1974-2017)
Natural de Caucaia, a cordelista, líder comunitária e ativista de direitos humanos Cristina Poeta se radicou no bairro Genibaú ainda na infância. A partir da atuação artística e política, ganhou relevância no cenário artístico de Fortaleza. Vítima da violência urbana, ela foi baleada em novembro de 2017 e, após sofrer complicações, faleceu em 5 de dezembro.
Biblioteca Cristina Poeta
Onde: rua Raimundo Ribeiro, 572 - Autran Nunes
Contato: (85) 3452-3891
Herbênia Gurgel (1957-2017)
Nascida em Acopiara, Maria Herbênia Gurgel Costa trabalhou como bibliotecária ao longo da vida, assumindo em 2009 a diretoria da Biblioteca Municipal Dolor Barreira. A profissional também chegou a atuar como Presidente do Conselho de Biblioteconomia do Ceará. Herbênia faleceu em 3 de abril de 2017, em Fortaleza.
Biblioteca Infantil Herbênia Gurgel
Onde: rua 541 E - Conj. Ceará II
Contato: (85) 3259.4370
Antonieta Noronha (1936-2015)
Considerada a "grande dama do teatro cearense", a atriz Antonieta Noronha nasceu em Sobral em 14 de agosto de 1936. Uma das pioneiras das artes cênicas no Estado, a artista se formou no curso de Arte Dramática da Universidade Federal do Ceará em 1964 e atuou em diferentes grupos teatrais. Antonieta faleceu aos 79 anos em 2015, em decorrência de um câncer de mama. O teatro em homenagem à artista foi inaugurado com ela ainda viva, em 2004. Atualmente, o local se encontra fechado após o imóvel — que também acolhe a sede oficial da Secultfor e do Memorial da Resistência — entrar em obras, em março de 2023.
Teatro Antonieta Noronha
Onde: rua Pereira Filgueiras, 4 - Centro
O simbólico do nomear
“A historiografia é um ato permeado por escolhas que passam pela instância das ideologias, das motivações de determinar que algo ou alguém merece ser lembrado na posteridade”, inicia a historiadora e pesquisadora Luiza Helena Amorim, que foca em temas como Patrimônio, História da Arte no Ceará e mulheres artistas.
“Podemos compreender a nomeação de um equipamento cultural como um ato historiográfico, pois sempre vai remeter à imagem de uma personalidade do passado que perdurará no futuro”, segue Luiza.
A flagrante presença diminuta de nomes de mulheres em equipamentos públicos da cultura evidenciada pelo levantamento do Verso reflete uma questão maior sobre o espaço de figuras históricas femininas, aponta a pesquisadora. “Essa ausência de homenagem à história das mulheres em equipamentos públicos é um sintoma de que ainda há uma grande desigualdade de direitos históricos”, resume.
“A cidade de Fortaleza, por exemplo, pouco conta sobre as mulheres que fizeram história em suas ruas, equipamentos e monumentos. Há quantas estátuas e bustos de mulheres nas praças?”
Lembrando que o “movimento de tirar as mulheres da invisibilidade, dos apagamentos na história, impostos a elas por tantos séculos”, é recente, a pesquisadora atenta aos avanços necessários neste campo. “Muitas histórias permanecem soterradas nos arquivos ou não há fontes guardadas”, ressalta.
“A política de memória precisa ser mais sensível à necessidade de fazer as mulheres ocuparem um lugar que elas também merecem, pois também fizeram história”, defende Luiza.
O que diz o Direito
À luz legal, o advogado e professor da Universidade de Fortaleza Humberto Cunha, especialista em Direitos Culturais, explica que, no Brasil, “entende-se que nominar um espaço público é um ato de Direito Administrativo”.
O fato, segue o professor, “permite a cada ente da federação criar suas próprias regras, respeitados os princípios da Administração Pública, que são: legalidade, moralidade, impessoalidade, publicidade e eficiência”.
Humberto explica que, de acordo com a Constituição do Ceará, é vedado “atribuir nome de pessoa viva” a espaços como bibliotecas, edifícios públicos e outros. Já em relação à Fortaleza, o que a Lei Orgânica estabelece é que cabe à Câmara Municipal dar nome especificamente a “bairros, praças, vias e logradouros públicos”.
No artigo “A natureza jurídica de nominação de espaços públicos”, assinado por Humberto e pelo professor Allan Magalhães (Universidade Estadual do Amazonas), a defesa é de que tal ato “é uma atividade vinculada aos Direitos Culturais (e apenas operacionalmente ao Direito Administrativo), pois isso representa criar um lugar simbólico de memória”.
A partir daí, caso o entendimento defendido pelos advogados seja oficializado, “a União criaria normas gerais sobre o assunto e os estados e municípios a suplementariam de acordo com a realidade local, mas sem contrariar aquelas”.
Que mulheres poderiam nomear equipamentos culturais no Ceará?
Foi a partir desta questão que o Verso buscou artistas de diferentes linguagens com atuação no Ceará para, em um exercício simbólico e de reverência, angariar sugestões de mulheres do Estado que mereceriam ter a memória reforçada em nomes de equipamentos culturais.
“Nomear equipamentos culturais públicos com nomes de mulheres que tanto contribuíram para a história do Ceará e para os mundos da arte é muito simbólico por manter as poéticas vivas, as memórias e potências criativas”, sustenta a pesquisadora e historiadora Luiza Helena Amorim — que, também instada a contribuir, cita a mestre da cultura Nice Firmeza (1921-2013) e a artista visual Heloísa Juaçaba (1926-2013) pelas atuações “em prol do coletivo”.
Adna Oliveira, cantora e atriz
Uma figura histórica de quem são poucos os arquivos e documentos oficiais, incluindo em termos de imagem, Tia Simoa é ressaltada pela cantora e atriz Adna Oliveira como uma mulher cearense de destaque para o Ceará. Companheira de José Napoleão, jangadeiro que atuou junto a Dragão do Mar na greve da classe, ela teve papel relevante como abolicionista no Estado, mas teve a trajetória invisibilizada.
“Esse nome para mim é: TIA SIMOA! Mulher, negra que teve uma importante participação no levante contra o tráfico de negros e negras em nosso estado o que culminou na greve dos jangadeiros. Infelizmente, como tantas outras mulheres e principalmente negras, seu nome foi apagado dos livros de história. Ter o nome de TIA SIMOA, batizando um equipamento cultural em nosso estado é uma forma simbólica de reparação de sua luta e de tantas outras mulheres e de fazer conhecido seu nome”
Layla Sah, atriz
Aproveitando o caráter simbólico do exercício proposto, a atriz cearense Layla Sah ecoa o nome de uma contemporânea, figura referenciada — e reverenciada — pela artista tanto pelo que é, quanto pelo que representa: a premiada cantora e atriz Verónica Valenttino, um dos grandes nomes das artes no Estado e que tem despontado a nível nacional em trabalhos de destaque.
“Vou de uma das minhas, que está ganhando o país com o seu talento inegável e lapidado. Dona de uma voz e de uma interpretação perfeitas, o que lhe rendeu os maiores prêmios do teatro nacional (Prêmio Shell, Prêmio Bibi Ferreira), vem representando nosso Ceará lindamente nos palcos e nos musicais. A estonteante e representativa Verónica Valenttino certamente deveria ter seu nome batizando um equipamento pela sua capacidade de insistir na arte e constante crescimento, e pela representatividade que nos traz enquanto artistas trans, que geralmente temos tão poucas oportunidades e chances de mostrar nossa arte! É sobre resistência que cito o nome da atriz e cantora Verônica Valentino”
Merremii Karão Jaguaribaras, artista visual
Com atuação que destaca os grafismos do povo Karão Jaguaribaras, a artista visual Merremii Karão Jaguaribaras destaca a Cacique Mãe Ota, ressaltando que "arte e cultura carregam a simbologia do cuidar, preservar e despertar memórias". "Mãe Ota" significa "mãe de todo mundo, a mãe do coletivo, a mãe da aldeia" e o batismo da cacique com este nome evidencia a trajetória de resistência que empreendeu.
Mãe Ota vem de um legado matriarcal que defende a mulher em diferentes posições, é uma guerreira indígena Karão Jaguaribaras responsável por salvaguardar a memória indígena Karão Jaguaribaras, que foi silenciada por cinco gerações. Como mulher guardiã, se tornou responsável em manter e preservar a cultura étnica de nosso povo. Foi nas crianças que percebeu o futuro e com as crianças passou grande parte da vida ensinando a língua materna, a cultura originária, as práticas de como usar os grafismos e pinturas no corpo e principalmente, garantir a existência da identidade étnica raiz da cultura Originária Cearense"
Wilemara Barros, bailarina
Bailarina e professora de dança, Wilemara Barros reforça o convite pela memória da artista, bordadeira e mestre da cultura Nice Firmeza. Nascida Maria de Castro Firmeza, ela atuou com o marido, Estrigas, em prol das artes visuais no Ceará desde os anos 1950, compondo movimentos importantes da linguagem no Estado.
“Acho importante pensar em um equipamento com o nome de Nice Firmeza. Nice, natural da cidade de Aracati, tem um histórico de vida bastante rico com o pintor, escritor e crítico de arte brasileiro, Estrigas. Nice, pintora e artista visual, bastante atuante ministrava aulas de bordados e pinturas de linhas para crianças na cidade de Fortaleza, trabalhou até aos 90 anos em uma exposição de suas obras e juntamente com seu marido fundou um minimuseu (Firmeza) em um sítio em Mondubim, ponto de encontro de artistas e intelectuais cearenses”