Ato de escrever cartas a Padre Cícero resiste ao tempo e revela fortes percursos de fé

Mesmo após 85 anos de falecimento do homem considerado santo, correspondências continuam frequentes e alavancam olhares de estudiosos

Água benta na mala, coração aquecido e uma súplica: a cura. Sob o sol a pino de Juazeiro do Norte, onde nasceu, Inez Pereira de Melo recolhia amostra do líquido transparente que levaria ao Rio de Janeiro para o vizinho Jefferson Fialho, acometido de doença. Era 2017. “Já estava desenganado”, relembra a dona de casa. “Quando bebeu da água, a fé dele, junto à minha, fez meu padrinho curar ele. Recebeu alta. Hoje, está bom, trabalhando. Então, primeiramente Deus e, segundo, a nossa fé fizeram ele estar bem, em nome de Jesus”.

Um ano após a superação do quadro de Jefferson, a mulher retorna ao lugar de onde saiu – pela primeira vez vestida a caráter, com batina preta – para cumprir a promessa que havia feito: caso a saúde batesse à porta do filho da amiga, traria carta escrita por ele direcionada ao Padim. Sinal documentado de gratidão. Embaixo das linhas, o remetente também colocou fotos, de “antes e depois”, atestando a mudança, feliz graça.

“Ele ficou emocionado quando falei que estava voltando para a minha terra e pagando a minha promessa, de declarar a cura”, sublinha.

Feito Inez, dia após dia milhares de pessoas deixam, comprimidas entre ex-votos, terços, remédios, remendos de roupas e fortuna de objetos, correspondências escritas a próprio punho para Padre Cícero. A tradição contorna a ordem do tempo ao permanecer potente e contínua, mesmo após 85 anos de falecimento do homem considerado santo, completados ontem (20). Situa percursos de devoção e crença de diferentes povos. Gente de todo o Brasil que percorre as ruas e espaços de oração em Juazeiro em busca de pedir, agradecer, reverenciar.

“São escritos que trazem todo tipo de tema. É algo bem vasto, se comparado, por exemplo, às cartas que escrevem em Aparecida. Lá, normalmente os textos são voltados apenas para a questão do agradecimento. Para Padre Cícero, os devotos escrevem não apenas agradecendo, mas também pedindo. Que o irmão ou o filho pare de beber, que haja harmonia no casamento, proteção aos netos, libertação do mau-olhado… Tudo o que você imaginar”, enumera Raimundo Luiz do Nascimento, professor do curso de Letras da Universidade Regional do Cariri (Urca). 

Conceito 

Sob o prisma da linguística, o pesquisador especificou na tese de doutorado, defendida em 2018, o lugar das cartas ao religioso, dimensionando a atividade. “O gênero carta de romeiros escrita pelos devotos do Padre Cícero: da estrutura e do uso à conceituação” mapeia trajeto histórico e técnico, das primeiras evidências de escrita de correspondências no mundo até chegar ao foco no qual se propôs a analisar.

“Eu queria saber se o que os fiéis escreviam realmente eram cartas, se compunham a estrutura propriamente dita do gênero. E eles escrevem, sim, por mais simples que seja. Mesmo aqueles textos bem pequenos conseguem conservar uma disposição coerente”, avalia Raimundo, evidenciando os distintos aspectos do texto, tais como abertura do evento, corpo da carta e encerramento, cada qual com uma função específica dentro do locus de estudo maior.

Eles escrevem porque sentem uma necessidade. E ainda que, por vezes, não tenham uma condição econômica ou física para fazer visitas a Juazeiro do Norte – geralmente colocam isso no projeto de vida anual – continuam a desenvolver as linhas”.

Movimento

A multiplicidade em cada excerto reverbera o encorpado mosaico humano de Brasis que aporta na terra do patriarca juazeirense. Pároco da Basílica Santuário de Nossa Senhora das Dores, localizada na cidade, padre Cícero José da Silva elenca de onde partem os principais fluxos de visitação à terra santa. Na análise dele, alagoanos e pernambucanos lideram o front, mas há mais. Bem mais.

“Falando-se de Nordeste, após os já citados, vêm Sergipe, Rio Grande do Norte, Paraíba, Piauí, Maranhão e Bahia. Também recebemos romeiros/visitantes de Minas Gerais, Espírito Santo, Pará e São Paulo”. 

Segundo ele, esse movimento de cartões escritos se intensificou por ocasião da morte de Romão Batista, em 1934, quando os romeiros e romeiras começaram a lotar Juazeiro do Norte trazendo, junto ao caminhar insone, relatos de toda ordem, gravados no papel. Graças alcançadas e benefícios pessoais ou espirituais serviam, assim, como testemunho do que lhe ocorreram de bom, ampliando o sentido das romarias para acontecimentos de envergadura singular também para a escrita de cartas.

“Há algumas que vêm via Correios, mas a maioria chega mesmo por meio de romarias. Os fiéis trazem e entregam ao padre, fazendo questão de pedir a bênção ao sacerdote responsável pela atividade que vieram realizar. Testemunham, ali, sua fé”, reitera o pároco Cícero.

Com o recebimento, as correspondências, segundo ele, são então catalogadas pela equipe de Comunicação e Acolhida

Há polos mais consolidados. Geralmente, os envelopes são colocados pelos fiéis no túmulo do Padre Cícero (situado na Capela do Socorro), no altar de Nossa Senhora das Dores (Basílica Santuário) e numa capelinha de ex-votos, que fica na Capela do Encontro (Basílica Santuário). Dali, são entregues e abertas pelo reitor da instituição eclesial principal da região e direcionadas aos arquivos da Paróquia. Conforme o sacerdote, “não há um controle de quantidade, mas o período de maior fluxo de cartas recebidas é nas romarias que acontecem no período de julho de um ano a fevereiro do ano seguinte”.
 
Quando indagado sobre como o contexto de mídias sociais interfere nesse processo – se há, por exemplo, devotos que trocaram o exercício de escrever as correspondências para enviar os pedidos/agradecimentos pelas redes virtuais da basílica – padre Cícero é categórico: “Por incrível que pareça, as cartas ainda são escritas a próprio punho. Nas redes sociais chegam somente pedidos de celebração de missas, horários de confissões, sacramentos, entre outras demandas”.

Cultura

A dinâmica de pausar a rotina e se debruçar sobre o papel para desenvolver texto em agradecimento ou súplica não é exclusividade de Juazeiro do Norte e Padre Cícero. Na verdade, é uma cultura do próprio catolicismo – embora, no Brasil, prevaleça a dinâmica de agradecer, como destacou o professor da Urca, Raimundo Luiz. 

Em vários lugares do mundo conhecidos por serem núcleos de fervorosa adoração, feito Portugal, Espanha e França, há esse costume da proteção, de pedir um favor a um santo ou santa e ter, escrita, a graça recebida.

“Antes de tudo, existe a vontade de concretizar, de materializar a promessa. Faz o pedido e, quando recebe a graça, o devoto paga o compromisso. É um ritual católico, não uma característica específica do Ceará, Nordeste ou Brasil. Faz parte de uma cultura maior”, contextualiza Régis Lopes, professor do curso de História da Universidade Federal do Ceará. 

Para ele, há dois detalhes importantes quando de um olhar mais aprofundado sobre esses escritos. Primeiro, quanto aos pedidos, a maioria deles concentra-se nas vertentes saúde (de dor de cabeça a problemas de loucura) e casamento (para abençoar a união ou pedir pelo enlace que ainda vai se consumar). “Não à toa, é relevante notar que a maior parte de quem escreve são devotas. Mulheres”, explica.

Por outro lado, o pesquisador destaca que há uma diferença entre as cartas antigas e as novas. Existe uma atualização dos termos. Se antes as súplicas remetiam mais a questões de cunho existencial e interpessoal, atualmente acontece de muitos pedidos estarem ligados à estética, à beleza do corpo ou à conquista de bens de consumo ou emprego. “São bem mais diversificados e ligados ao ter coisas”.

As aprofundadas perspectivas sobre essas questões são trabalhadas no livro “Papel passado: cartas entre os devotos e Padre Cícero”, lançado em 2011 e segundo volume da Coleção ao Portador, do Instituto Frei Tito de Alencar. Nele, Régis reúne coletâneas de correspondências e análises sobre as missivas enviadas ao histórico sacerdote.
 
No total, foram avaliados cerca de 800 cartas e bilhetes, outrora guardados no Arquivo dos Salesianos, localizado em Juazeiro do Norte. As linhas englobam as primeiras décadas do século XX e foram organizadas nos anos 1970 pelo sociólogo Ralph Della Cava (autor de “Milagre em Joaseiro”) e finalizada pelo padre Antenor Andrade.

Algo interessante de notar é que há também várias reclamações, como ‘Meu padrinho, essa já é a terceira carta que estou escrevendo e não recebi respostas’ ou ‘Eu fiz o chá que o senhor me mandou e não deu certo’. Essa liberdade de também chamar a atenção do homem tão querido revela sobretudo uma intimidade muito grande entre o devoto e Padre Cícero. Até que o pedido não tenha dado certo, muitos deles ficam insistindo para que tudo se concretize”, observa Régis.

Por sua vez, quanto ao que justifica a manutenção do movimento de escrever correspondências a um dos patriarcas da fé cearense, o historiador afirma existir uma premissa maior a se considerar.

“Trata-se exatamente da capacidade de proteção. O Estado no Brasil nunca foi de bem-estar social. Tanto é que nós observamos, sobretudo atualmente, que está crescendo muito a quantidade de cartas deixadas a Padre Cícero. Quando a taxa de desemprego sobe, há altos índices de textos envolvendo pedidos. As pessoas vão tentando, de alguma maneira, resolver isso por meio de outras instâncias. Pelo fato de não termos o Estado de assistência, recorrem à prática da fé”.

Além desses componentes, o pesquisador Raimundo Luiz percebe ser possível, a partir do recorte estabelecido, dar um rosto ao povo que chega, escreve, entrega e confia. São indivíduos sedentos. “Querem ter uma vida digna, também o grande desejo de Padre Cícero. Algo relacionado ao crescimento, à evolução própria. São pessoas que têm uma crença, muito pessoal e intensa, e precisam de um líder. Romão Batista, assim, consegue aglutinar e atender a essas necessidades, quer sejam de ordem material, quer sejam de ordem espiritual ou afetiva. É isso que todos buscam”, examina.

- SAIBA MAIS

Padre Cícero Romão Batista: Influência e farto legado 

Personagem incontornável da história cearense, Padre Cícero Romão Batista nasceu em humilde casa, no Centro do Crato, em 1844. Era o segundo filho do casal de agricultores Joaquim Romão Batista e Joaquina Vicência Romana. Oriundo de família sertaneja pobre, foi criado pelas irmãs, “Mariquinha” e Angélica. A inclinação para o celibato começou cedo. Sentiu a vocação para o sacerdócio após ter lido sobre a vida de São Francisco de Sales, fazendo voto de castidade ainda aos doze anos. 

O ingresso no Seminário da Prainha, localizado no Centro de Fortaleza, ocorreu quando tinha 21 anos de idade. Cinco anos após, já estava sendo ordenado. Retornou à cidade de origem no ano seguinte, mas sua identidade maior foi com o vilarejo denominado “Joazeiro”, pertencente àquele município. Daí em diante, tornou-se o evangelizador e líder espiritual da comunidade, que passou a respeitá-lo. 

Dentre os fatos que merecem maior relevância sobre seu caminhar, estão a prolífica atuação na política local e um acontecimento que mudaria para sempre a forma como olhariam para ele: ao consagrar uma hóstia e pôr na boca da beata Maria de Araújo, viu a mesma transformar-se em sangue. 

O “Milagre da hóstia” se deu quando faltavam apenas 18 dias para o sacerdote completar 45 anos. Conforme historiadores, Padre Cícero foi suspenso das ordens devido ao acontecimento. Desde 2015, porém, está em curso o processo de reconciliação do religioso com a Igreja, a qual o excomungou antes da morte, o que alimenta a esperança dos fiéis de vê-lo um dia santo canônico.

De acordo com estudiosos, a notícia do “milagre” correu rapidamente e passou a atrair fiéis de todos os lugares Brasil afora, transformando Juazeiro do Norte em um dos mais famosos centros de romarias do País.

Estima-se que cerca de 2 milhões de romeiros são acolhidos na cidade anualmente, com seus instrumentos de fé e devoção, potencializando a figura de “Padim Ciço”, como ficou popularmente conhecido, em um dos símbolos maiores da fé no Ceará.