As Travestidas: último show do coletivo que revolucionou a cena artística cearense

O adeus do grupo acontece neste domingo (15), no Cineteatro São Luiz, marcando o fim de uma história com mais de 15 anos de brilho e resistência

Um grupo de pessoas inquietas. Quem a vida escolheu para estar ao lado. Um marco no teatro contemporâneo cearense. Uma grande família. Se você perguntar às Travestidas quem elas são, ouvirá essas respostas. É coisa não só de ouvido, porém. Dá para sentir no olhar, no falar, em cada detalhe do corpo e, arrisca-se, até da alma. Ser Travestida é transcender.

“São minhas irmãs, com quem quis construir uma arte que acredito – transgressora, política. Com elas, pude ser família e ter um lugar de acolhimento”, situa Patrícia Dawson, uma das integrantes do coletivo que, neste domingo (15), apresenta o último espetáculo. “Cabaré das Travestidas - A Despedida” chega ao Cineteatro São Luiz permeado de memória e força.

De não menos alegria também, contentamento. O clima no palco será de celebração. É preciso festejar uma trajetória de desafios, mas, sobretudo, de glória. Ao mesmo tempo, reconhecer o fim. Feito tudo que começa, uma hora as coisas hão de acabar. 

Mas, afinal, por que essa escolha? Por que agora e quais motivos influenciaram na decisão?

“Cada uma tomou uma história diferente. Eu mesmo já não tinha condições de estar no coletivo por conta das minhas demandas no audiovisual”, explica o ator e diretor Silvero Pereira, fundador do grupo. “E não apenas eu. Outras pessoas começaram a tocar projetos próprios. Isso fez com que não déssemos mais conta do coletivo. Foi uma decisão natural”.

A bem da verdade, a cisão foi realizada ainda durante o instante mais denso da pandemia de Covid-19. Contudo, segundo Silvero, é importante marcar a despedida no palco – oportunidade geralmente rara para a maioria dos artistas e coletivos.

O espetáculo, assim, inspirado no teatro de revista e de variedades, unirá música, festa, dublagens, talkshow, deboche e resistência. Silvero retomará a drag Gisele Almodóvar para comandar o momento junto de Deydianne Piaf, personagem do comediante Denis Lacerda.

Feito um programa de TV, as duas anfitriãs apresentarão as artistas da noite. Um elenco sem-par e que já faz muita falta: Mulher Barbada, Yasmin Shirran, Patrícia Dawson, Verónica Valenttino, Karolaynne e Betha Houston. Brilhante e imperdível cabaré. “A gente vai sair feliz dessa história”.

Pesquisa, presença, potência

O coletivo As Travestidas é resultado de intensa pesquisa sobre o universo das travestis e transformistas. O primeiro passo desse processo foi a construção do solo “Uma Flor de Dama” – fruto da monografia de Silvero Pereira, outrora estudante do Instituto Federal do Ceará. Em junho de 2008, “Cabaré da Dama”, segundo substrato dessa investigação, ganhou o tablado, abrindo margem para o grupo crescer e frutificar.

Em números, é possível comprovar a qualidade e inventividade dos projetos. Foram sete espetáculos teatrais, duas edições do Translendário (calendário ilustrado com imagens de travestis em referência a símbolos religiosos), seis publicações no YouTube, dois documentários – um já produzido e outro sendo finalizado, sobre a história do grupo – uma circulação nacional com a montagem “Quem tem medo de travesti” e um bloco de carnaval. Várias publicações no jornal atestam esse acervo. 

De trabalhos inicialmente rejeitados pela classe artística ao reconhecimento dentro e fora do Estado, a travessia das meninas é singular. “Aos poucos, à medida que mais pessoas iam se unindo a nós, fomos vendo que não éramos apenas um grupo de teatro, mas uma reunião de pessoas com diferentes habilidades e características em diversas áreas – no Audiovisual, na Dança, na Música. Criamos o coletivo artístico justamente por conta disso”, diz Silvero.

Intérprete de Deydianne Piaf, o ator, humorista e produtor Denis Lacerda é uma das colunas vertebrais d’As Travestidas, tendo ingressado no grupo em 2008 após vencer concurso promovido por Silvero – O prêmio? Um engradado de cerveja e um DVD da cantora e atriz americana Cher. Ele reitera a diversidade das integrantes e se orgulha pela estrada.

“Não me arrependo de nada que eu fiz no coletivo. Hoje a gente não faz algumas coisas, não levantamos algumas pautas, porque alguns assuntos foram se encaminhando para outro caminho. E tudo bem. Acho que foi a construção de um diálogo democrático para a arte LGBTQIA+”, analisa. “Essa é uma das conquistas do grupo”.

Além disso, questionar a sociedade e oportunizar que as participantes descobrissem a própria identidade são outros vetores de sucesso levantados por Denis.

“Conseguimos levar um público muito bom pro teatro, que ninguém conseguia levar. Temos outras referências – como o grupo Metamorfose, dos anos 1980 – mas acho que, nos anos 2000, as Travestidas vieram.  A gente queria fazer o que estávamos a fim de fazer, não foi algo planejado. O resto foi consequência. E deu certo. É um nome que vai se perpetuar para outras gerações”.

Mesma opinião possui Mulher Barbada – desde 2015 na formação. Foi a partir dela, inclusive, que o coletivo começou a investir na própria voz das participantes, para além da dublagem.

“As Travestidas são um ponto de mudança, de levar nossos corpos e histórias para cima do palco sem medo, sem amarras, sem ficar pensando muito se é esse tipo de tema que tem que ir pro teatro”, dimensiona a drag queen. “Às vezes, acho que as pessoas não percebem como o grupo foi importante nesse momento”.

Segundo a artista, no início das apresentações do projeto, as integrantes eram taxadas como “um bando de viados querendo fazer 'viadice' em cima do palco”. “Um bando de bixas, uma vez que, pra ser um ator mesmo, a ideia era de que tinha que fazer um homem, heterossexual”, destaca.

“Nós quebramos isso. Pra mim, como um jovem artista de 16, 17 anos de idade querendo fazer teatro e entendendo que eu podia quebrar essas amarras do homem e podendo ser quem eu quisesse em cima do palco, foi libertador”.

Lutas e reinvenções

Mencionada no início deste texto, Patrícia Dawson afirma haver uma versão dela antes e depois do coletivo, convocando outra ciranda de liberdade. O caminhar no grupo começou em 2009, fazendo-a florescer e se reconhecer mulher trans. 

“A Patrícia de antes era medrosa, sem perspectiva, não acreditava no poder que ela tem como mulher preta, de periferia, gorda. Depois de tudo isso, pude acreditar mais nesse poder de luta, de resistir e de existir”.

Não à toa, o legado que o grupo deixa pessoal, profissional e socialmente, é de transformação. Melhor: revolução. Foram seis os trabalhos realizados envolvendo a artista, cada um incluindo mais um tijolinho na construção das coisas vitais.

“A gente abriu muitas portas. Além da arte, fizemos com que muitas pessoas pudessem viver da arte transgressora, como de fato são. A gente percebe que muitas meninas se encorajaram a questões de gênero por conta disso, desse nosso trabalho. Entendo que somos, de fato, necessárias nessa cidade por tudo isso que ainda estamos sempre construindo”.

Igualmente envolto por tantos passos inesquecíveis, Silvero Pereira é todo satisfação. Ele recorda do início com apenas três integrantes: além dele, Verónica e a atriz Alícia Pietá.

Juntos, o trio costumava se apresentar no porão do Theatro José de Alencar, com a peça “Cabaré da Dama”. Aos poucos, por meio de concursos com a plateia, novos membros foram chegando, a exemplo de Denis, Yasmin e Jesuíta Barbosa.

“Acho que as Travestidas mudaram muito o preconceito que a classe artística tinha sobre essa temática. Muitas coisas foram conquistadas, inclusive de políticas públicas para isso no meio artístico – editais LGBTQIAP+ foram encabeçados a partir de uma estrutura das Travestidas, de uma demanda nossa chegando na Secretaria da Cultura do Estado. Assim, muitos outros grupos de teatro começaram a surgir a partir dessa experiência”. 
Silvero Pereira
Ator e diretor, fundador do coletivo As Travestidas

Longe de se considerar pioneiro – há experiências anteriores, como o grupo Dzi Croquettes, atuante em São Paulo e no Rio de  na década de 1970; o Grupo de Teatro Vivencial (PE), em 1974; e o já mencionado Metamorfoses (CE), na década de 1980 – as Travestidas se consideram mais um grupo desse ciclo de amar, mudar e abrilhantar as coisas.

A própria Academia reforçou esse componente. Apenas na Universidade Federal do Ceará, conforme consta no Repositório da instituição, cinco trabalhos foram desenvolvidos entre 2012 e 2022 englobando as vedetes do teatro cearense. 

De acordo com Silvero Pereira, “a gente fica muito feliz porque é essa produção acadêmica que faz o registro, de fato, da história das Travestidas no panorama das Artes Cênicas do Ceará. Tatua nele, e comprova a existência, eficiência e importância desse coletivo”.

Não à toa, ao que tudo indica, a emoção tomará conta de todas na última apresentação. Cada uma seguirá o próprio rumo sabendo que, ali, não deixará de existir aconchego, energia e grandiosidade – e talvez, quem sabe, até um grande reencontro daqui a uns 10, 15 anos. Será?

Independentemente do que houver, missão cumprida – e ainda haverá, no carnaval deste ano, a tradicional Transvirada. “Sempre falei de uma arte epidérmica, aquela que precisa ser absorvida pela pele. Não é algo só de assistir, apreciar e voltar pra casa. Cada espetáculo nosso é importante assistir, apreciar, se inquietar e, partir dessa inquietação, no dia seguinte reverberar ainda no espectador, gerando discussões nas mesas de bar, no café da manhã, com a família, na escola, na universidade. E que isso provoque uma mudança não só durante os 60 minutos de espetáculo, mas na vida”.

As Travestidas sempre transcederão.


Serviço
“Cabaré das Travestidas - A Despedida”
Dia 15 de janeiro, às 18h, no Cineteatro São Luiz (R. Major Facundo, 500 - Centro). Ingressos à venda no Sympla e nas bilheterias do teatro. Entrada: R$50 (inteira) e R$25 (meia entrada) com limitação de 40% dos ingressos. Classificação: 12 anos