Arte nas redes sociais: seguidores vão de aliados na divulgação a pré-requisito para a contratação

Artistas debatem vantagens e desvantagens de produzir conteúdo para a internet

Quantos seguidores você tem? A resposta a essa pergunta, em muitos casos, tem virado carta de apresentação. De álbum pessoal a portfólio profissional, redes sociais como o Instagram ativaram novas regras de mercado e a classe artística também foi afetada por elas. Na semana passada, inclusive, a atriz Alice Braga levantou voz contra os testes de elenco que levam em consideração essas métricas.

“Não deveria ser medida para fazer qualquer coisa. Como a gente vai empregar atores incríveis e desconhecidos? É inacreditável, mas é o mundo que a gente vive”, argumentou a atriz. E não é de hoje que a performance na internet virou um critério. Pelo menos é o que expõe o ator cearense Gero Camilo, 51 anos, com três décadas dedicadas ao teatro e ao audiovisual brasileiro.

Há mais de três anos, ele conta, foi chamado para participar de um filme e recebeu da produção uma lista com os nomes dos atores ao lado do número de seguidores. 

“Foi um absurdo me colocarem naquela situação. Eu não tinha tantos seguidores frente aos outros nomes, de youtubers, comediantes, mas era o mais experiente em cinema. Como um produtor te chama para o trabalho colocando essas questões? O que ele quer dizer com isso? Vai interferir no salário, no mínimo. Sei que isso é uma intimidação, uma negociação”, entende ele, que, na ocasião, recusou a proposta.

Nas próprias redes sociais, Gero diz escutar, observar e participar de tudo, essencialmente pautado na liberdade de expressão, e não julga quem obtém delas o principal sustento, mas faz algumas ressalvas.

“Eu transito. Não quero nada com isso e ao mesmo tempo estou lá, e se trabalho vier, com certeza, vou pensar a respeito. Não é moral a questão, é estética, de relação, e tem a política envolvendo as duas. Essa estética está à mercê de manipulação dos donos da rede social. Não dá pra ser ingênuo, estamos sendo orquestrados”, opina.

O ator avalia que todo esse processo desencadeia uma espécie de recolonização, tendo em vista o poder que as multinacionais de comunicação assumem sobre os usuários.

“É uma cadeia comercial de trabalhadores desempregados e essas empresas vindo como ‘a salvação’. É uma mistura entre a publicidade e o artista que deixa de fazer arte pra vender o produto, e dali ele tira um troco, acaba virando isso”, afirma.
Gero Camilo
Ator

Promessas antigas, problemas atuais

Em 2010, a atriz e encenadora Noá Bonoba, 31 anos, estava iniciando na produção teatral, quando viu no Facebook uma chance de desenvolver estratégias de divulgação dos trabalhos artísticos de forma gratuita. Ampliar o alcance de obras independentes, para além do conhecimento dos amigos e da família, um desafio comum nas artes, já parecia um ganho e tanto. 

Mas, aos poucos, algumas promessas foram se revelando como armadilhas. “A gente acaba tendo que seguir um pouco ou completamente a lógica ali daquela rede social, né? E isso vai afetando o nosso comportamento, os conteúdos que a gente produz”, admite.

Mais de uma década depois, Noá viu-se refém daquilo que seria a válvula de escape, uma sensação potencializada com a pandemia de Covid-19, quando as redes sociais também viraram o único território possível de apresentação.

“É muito assustador, porque isso gera uma cobrança, uma autocobrança e uma autossabotagem imensa de existir no mundo enquanto atriz, enquanto ator, tendo que engajar as suas redes sociais de uma forma que está para além da sua capacidade”, diz. 

“Essa pressão paralisa mesmo os nossos processos. É doentio, é tóxico demais pensar dessa forma, ao mesmo tempo que  é um sistema que está sendo alimentado o tempo todo na era das influências digitais, das pessoas que tem uma figura pública virtual fabricada para aquilo”, observa a profissional, também doutoranda em Comunicação pela Universidade Federal do Ceará.

Em diálogo com esse discurso, a cantora Soledad, 31 anos, escreveu um manifesto desabafo em julho de 2021, cuja mensagem principal é bem objetiva: “Lugar de artista é no palco e não no Instagram!”. Cansada de explicar porque não conseguia aderir à demanda de gerar conteúdo, ela denunciou uma lógica que oferece dinheiro como qualidade de vida em troca da saúde mental e afetiva. 

“Isso tudo só beneficia esse sistema que, neste momento, sequer nos oferece o ‘pão e circo’. O Instagram e o Tik Tok nos usam como bobes da corte. É cruel essa demanda, é desesperador termos que aderir a essa loucura para conseguirmos promover o nosso trabalho”, publicou.

Em entrevista ao Diário do Nordeste, a cantora ressaltou que, atualmente, existem convocações que estabelecem um mínimo de seguidores como condição de participação.

“Hoje, são esses números que determinam a trajetória de um artista em qualquer espaço de comunicação. As pessoas não são sensíveis às qualidades e habilidades, mas às quantidades, muitas vezes compradas, o que é péssimo. Inclusive para  formação cultural do país”, estabelece.
Soledad
Cantora

Em busca de alternativas

Mas essas desigualdades também encontram ecos no passado. Noá Bonoba lembra que os famosos sempre existiram, as sub-celebridades também, e na história midiática, o status da fama dificilmente deixou de ser o critério de contratação principal, colocando em xeque as capacidades artísticas envolvidas.

“O que acontece hoje é que houve uma mudança, uma possibilidade de mais pessoas acenderem publicamente por meio do Instagram”, relata a atriz. E isso tanto pode abrir portas como fechar. “É cruel e cansativo demais. Conheço muita gente que desistiu, eu mesma já entrei nessa rota de colisão, mas preferi travar a batalha”, desabafa Soledad.

Nesse contexto, é essencial abraçar algumas vantagens. E, por isso mesmo, os artistas admitem a importância desses espaços na relação com o público, algo especialmente potencializado com a pandemia de Covid-19. 

Gero Camilo, por exemplo, vivia com uma antipatia a algumas questões relacionadas à rede, mas com a solidão e o isolamento, mudou radicalmente de pensamento. “Eu, que não tinha necessidade de postar, vi nisso minha ponte com o mundo exterior”, reconhece o ator. 

Soledad também identifica nessas plataformas um ponto de encontro importante, que contribui para que alguns laços continuem firmes. “Aqui me refiro também aos laços profissionais, já que, para muitos artistas, as lives via Instagram foram a única forma de contato com seu público e de também se manterem produtivos. Ajudando, nesse caso, uma parte dos espaços criativos e suas subjetividades”, destaca a cantora.

O que Noá acrescenta é a necessidade de não se render à padronização de conteúdos, evitando que valores e capacidade inventiva sejam minados nesses processos. E, para isso, ela aposta em recorrer a estratégias do passado.

“A gente precisa descobrir e urgentemente deixar de ter a rede social como a única forma de divulgação, né? Às vezes até revisitando formas antigas, ditas como ultrapassadas, de chegar nas pessoas”, projeta. 
Noá Bonoba
Atriz e encenadora

Soledad também entende como vital não ser o digital a única referência, e sim, mais um meio que ajude a organizar e a inspirar as necessidades afetivas e políticas que entrecruzam corpo e cotidiano.

“É preciso olhar pra dentro, para os lugares que ocupamos. Que movimento eu faço, com o privilégio que tenho, para gerar  mudanças mais igualitárias?! Será que estou reproduzindo a lógica a qual me coloco contra?!”, reflete.
Soledad
Cantora

E Gero aponta ainda para a importância de se reforçar as políticas públicas nesse momento, celebrando a Lei que institui o Programa Estadual de Desenvolvimento do Cinema e Audiovisual - Programa Ceará Filmes e cria o Sistema Estadual do Cinema e Audiovisual, sancionada pelo governador Camilo Santana no último dia 29 de dezembro.

“Esses são mecanismos políticos de defesa desse espaço artístico, cultural, comercial, que não se fecham dentro dessas redes e que não entregam o nosso conteúdo nas mãos de multinacionais que chegam ‘uberizando’ tudo e nos colocando em situação de exploração, recolonização. Quando a gente cria internamente, culturalmente, socialmente as nossas ordens políticas para que essa diversidade aconteça, e não só uma parte dela se torne soberana, todos ganham com isso”, comemora.
Gero Camilo
Ator