Foi com casa cheia e muitos aplausos que o Centro Cultural do Cariri Sérvulo Esmeraldo recebeu o Festival Choro Jazz. O evento, que completa 15 anos em 2024, chegou ao Crato pela primeira vez neste mês, como parte de uma edição itinerante que já passou por duas cidades no Pará em julho e ocupa o Ceará até o fim do ano – a capital cearense recebe o festival entre os dias 29 de novembro e 1º de dezembro, e Jericoacoara, a cidade-sede, terá atividades entre os dias 3 e 8 de dezembro.
O ineditismo de chegar ao Norte do País e ao Cariri do Estado em uma mesma edição é parte da celebração da longevidade do festival, idealizado em 2009 pelo produtor Antônio Ivan Capucho. Porém, a ideia de ampliar os polos de shows e oficinas deve ser replicada nas próximas edições, destaca Capucho, que já confirmou a realização do evento em 2025.
Para o próximo ano, o objetivo da organização é seguir com a itinerância em cidades do Norte e do Nordeste. Patrocinado pela Petrobras, o festival já tem mais uma edição garantida – as cidades e estados contemplados, no entanto, ainda serão confirmados.
A primeira etapa cearense do Choro Jazz 2024 contou com uma ampla programação formativa e artística, que fortaleceu o diálogo entre mestres da cultura popular do Cariri, músicos do Ceará e artistas de outros estados do País, como Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.
Dos dias 17 a 19 de setembro, estudantes de música puderam aprender teoria e prática com grandes nomes da música brasileira, em oficinas gratuitas realizadas na Vila da Música. Já nos três dias de shows – de 20 a 22 de setembro – a festa no Centro Cultural do Cariri começou com cortejos de grupos populares da região, como a banda Cabaçal dos Irmãos Aniceto, o Reisado Reis de Congo do Mestre Aldenir Aguiar e o Maracatu Uinu-Erê, além de participação do Povo Kariri do Sítio do Poço.
Já no palco principal, localizado no parque do CCCariri, nove shows movimentaram os três dias de festival. Se apresentaram o duo Júnior do Crato e Fabrício Rocha, o grupo Quartchêto, o contrabaixista Ney Conceição, Gilberto Monteiro convida Sucinta Orquestra & Gustavo Garoto, Carlinhos Patriolino & Choro Cabuloso, Moacyr Luz e Samba do Trabalhador, Tâmara Lacerda e Ranier Oliveira, O Trio e Egberto Gismonti e Orquestra à Base de Sopro de Curitiba.
Os shows aconteceram ao ar livre, com o clima fresco do fim de tarde reforçando o convite para chegar perto do palco, sentar nas cangas e almofadas dispostas no parque do centro cultural e aproveitar a boa música. Em toda a extensão do espaço – que também contava com feirinha gastronômica e de artesanato –, famílias e grupos de amigos curtiam os shows com atenção.
Os fãs mais animados, em sua maioria, eram as crianças: de violinos a pandeiros, os diferentes sons dos instrumentos cativaram os pequenos de todas as idades, que dançaram, brincaram e admiraram atentamente cada música.
Foi o caso de Francisco, 4, filho da professora universitária Lívia Nogueira Pellizzoni, 37. Deitados na grama, os dois aproveitaram juntos os shows da sexta-feira e do domingo pertinho do palco.
“Adorei a proposta de ser aqui na grama, todo mundo coletivamente curtindo o som de qualidade”, destacou Lívia. “A proposta da configuração do espaço também propiciou essa interação das crianças, das famílias. Quando está cansado, [ele] deita e descansa. Isso é uma coisa muito positiva”, pontuou.
Na parte de cima do parque, com visão privilegiada de todo o evento, a servidora pública Jeane Brito Siebra, 59, e o marido, o professor José Cleostenes de Oliveira, 63, curtiram as apresentações. José destacou que o casal fez questão de participar do evento durante os três dias e que ambos se surpreenderam com a programação.
Já Jeane destacou a importância do festival como vitrine para artistas do Crato, como Tâmara Lacerda e Ranier Oliveira, que se apresentaram no domingo (22). “O conhecimento vai ser a nível nacional, internacional, né? Então, para a gente, é um orgulho”, completou.
Destaque para a cultura cearense
Entre os artistas que se apresentaram no palco do Choro Jazz no Cariri, nomes cearenses despontaram como alguns dos shows mais interessantes e esperados da programação. Exemplo disso foi a dupla Júnior do Crato e Fabrício da Rocha, responsável por dar início às apresentações na sexta-feira (20).
Com o show “Selestrial”, que homenageia as diversas fases da carreira do compositor e multi-instrumentista Hermeto Pascoal – e que deve virar um álbum ainda nos próximos meses –, os dois destacaram, emocionados, a relevância da chegada do Choro Jazz no interior do Ceará.
“Aqui tem muito músico, tem muito artista, e o festival, além de três noites de shows, trouxe também três dias de oficina com grandes mestres da música brasileira. É uma oportunidade de esses alunos terem contato com esses mestres”, pontuou Júnior.
Já Fabrício destacou a oportunidade de poder levar a obra de Hermeto adiante, especialmente para gerações mais jovens, que nem sempre sabem de sua relevância para a música brasileira e internacional.
“Pra gente é sempre um aprendizado, sempre um desafio interpretar e tocar a obra dele – e eu acho que ele merece muito mais. Aliás, muitos grandes artistas aqui nesse país são esquecidos e isso vem de longe, então acho que a gente tem que também abrir os ouvidos”, afirmou.
Outro destaque no palco do festival foi o show “Nosso Encontro”, que reúne composições autorais da dupla caririense Tâmara Lacerda e Ranier Oliveira, além de releituras de clássicos da música brasileira, como “Rio Amazonas”, de Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro, e “Suíte Norte, Sul, Leste, Oeste”, de Hermeto Pascoal.
Violonista, cantora e compositora cratense, Tâmara fez sua segunda participação no Choro Jazz neste ano e não escondeu a emoção: em 2022, participou do evento como aluna das oficinas; desta vez, subiu ao palco em um dos dias mais cheios do festival, o domingo (22).
Na ocasião, a artista foi apresentada por sua avó, a cordelista Josenir Lacerda – que recitou um cordel de sua autoria sobre o evento –, e ainda cantou, pela primeira vez, uma composição autoral, a música “Pedra de Safira”. Antes do show, a mãe de Tâmara e filha de Josenir, Lusy Lacerda, também subiu ao palco e completou o trio de gerações de artistas.
O festival proporcionou, ainda, um encontro inesquecível. Fãs de Egberto Gismonti, Tâmara e Lusy puderam acompanhar o ensaio do artista com a Orquestra à Base de Sopro de Curitiba no sábado (21), na Vila da Música, e ouvir e compartilhar histórias com o compositor.
“A contrapartida do festival, que eu senti, foi totalmente de acolhida”, contou Tâmara. “É um dos únicos festivais onde não tem competitividade, onde o músico que vai se apresentar – que é um grande nome da música brasileira sempre, porque a curadoria é espetacular – vai mostrar o trabalho dele, mas também vai trocar, vai proporcionar conhecimento, vai permitir que a gente que está começando, que admira, possa vivenciar a música com a pessoa”, explicou.
Intercâmbio cultural demonstra pluralidade da música brasileira
Para Aline de Moraes, diretora de produção do Choro Jazz, um dos objetivos do festival é democratizar o acesso à música de qualidade – quebrando barreiras especialmente no que se diz respeito à elitização da música instrumental em suas diversas vertentes.
“A gente não pode colocar jamais a música, seja ela qual for, num lugar de elite. Isso para mim é um crime, um pecado, uma coisa que não deveria acontecer jamais. A gente tem que dar oportunidade para que as pessoas tenham o direito de escolha. Isso é democratização de acesso”, pontuou a produtora cultural.
Ainda segundo Aline, a etapa Cariri ressaltou a possibilidade de uma costura entre choro, jazz e manifestações da cultura popular – como o cordel e os grupos de reisado e maracatu –, destacando as potencialidades de cada um e as aproximações entre eles.
Nos shows, a curadoria que prezou o intercâmbio cultural possibilitou, também, aproximações com movimentos culturais de outros estados, a exemplo da apresentação do compositor e acordeonista Gilberto Monteiro e no show cênico do grupo Quartchêto, ambos gaúchos, além da famosa roda de samba carioca Samba do Trabalhador, conduzida pelo cantor e compositor Moacyr Luz.
Baterista e percussionista do Quartchêto, que entregou um dos shows mais aplaudidos da edição – e, talvez, a maior surpresa para o público –, Ricardo Arenhaldt ressaltou “a ebulição” cultural que o Cariri representa. Para ele, o show no Crato foi também oportunidade de demonstrar semelhanças entre as culturas musicais do interior do Cariri e do Sul do País, por vezes tido como uma região de música “muito séria”.
“Acho que muitas vezes as pessoas do Brasil pensam que os gaúchos são um pouco sérios, e não é verdade. No Sul a gente é muito bem humorado”, brinca. Na apresentação dos quatro músicos, elementos teatrais se uniram à música clássica e gêneros musicais regionais latinoa-americanos para uma apresentação que divertiu espectadores de todas as idades.
“A gente faz para se divertir, e o público se diverte junto”, pontuou Ricardo, com alegria, ao comentar as reações empolgadas de quem assistiu à apresentação. “A gente se sentiu em casa”, completou.
No comando do Samba do Trabalhador no Clube Renascença (RJ) há 20 anos, Moacyr Luz também comentou as possibilidades de encontro do festival. Antes de se apresentar no encerramento da segunda noite de shows, o artista subiu ao palco para ver o show do sobralense Carlinhos Patriolino – com quem já se apresentou nos anos 90 – com o grupo Choro Cabuloso, de Fortaleza.
“Sempre me encantei com a brasilidade do repertório dele e do instrumento que se tornou brasileiro, o bandolim. E você ver uma plateia respeitando a música instrumental... vim conferir, né? E fiquei muito impressionado”, celebrou.
Com uma apresentação que reuniu composições próprias, como “Clareou” e “Pra que pedir perdão?” e canções de outros grandes sambistas, como Cartola e Zeca Pagodinho, Moacyr e os músicos do Samba do Trabalhador ressaltaram as conexões artísticas que existem entre a música brasileira considerada “erudita” e a música popular.
“O samba, quando entra numa novela, por exemplo, é obrigado a criar o núcleo Zona Norte, o núcleo subúrbio, para justificar. Jamais uma protagonista beija na boca do outro com o samba. E nem sempre é assim, né?”, questionou o artista
“Quando você vai num numa roda de samba, as pessoas se apaixonam pela música e pela outra pessoa. Então, estar num festival de choro e jazz tocando samba é uma vitória para os meus conceitos”, ressaltou Moacyr, que disse estar emocionado por ver sua música “chegar tão longe de casa”.
Próximas edições no Ceará
Seguindo o circuito cearense, o Choro Jazz chega a Fortaleza nos dias 29 e 30 de novembro e 1º de dezembro, no Anfiteatro da Volta da Jurema, na Beira Mar. Na Capital, já estão confirmados shows de Leila Pinheiro e Roberto Menescal, além de oficinas musicais.
Já em Jericoacoara, o festival acontece entre 03 e 08 de dezembro, em local ainda a ser divulgado. Por lá, se apresentam João Bosco, Mônica Salmaso e André Mehmari, entre outras atrações.
Encerrando o evento, a organização irá homenagear a cantora e compositora Lia de Itamaracá, Patrimônio Vivo de Pernambuco, que fará um show em Jeri no dia 08 de dezembro. “Vamos acabar o festival com ciranda”, destacou Antônio Ivan Capucho.
*A repórter viajou ao Crato a convite do Festival Choro Jazz