A poesia brasileira está em silêncio. O compositor e escritor Aldir Blanc morreu na madrugada de segunda-feira (4). Tinha 73 anos e estava internado no Hospital Universitário Pedro Ernesto, localizado em Vila Isabel, Zona Norte do Rio de Janeiro. É mais um grande nome das artes vitimado pela devastadora Covid-19.
Dono de importante obra musical e literária, Aldir apresentou infecção urinária e pneumonia no dia 10 de abril. O quadro avançou para uma infecção generalizada. Cinco dias depois, amigos e artistas realizaram uma campanha para conseguir um leito na rede pública de saúde. Foi quando chegou ao Pedro Ernesto.
O berço foi no Estácio, Centro do Rio. Aldir Blanc Mendes nasceu em 2 setembro de 1946. Observador das ruas e da alma suburbana carioca, ingressou em 1966 na Faculdade de Medicina. Especializou-se em psiquiatria. Abandonou o curso para dedicar-se exclusivamente à música. O Brasil ganhava um dos mais importantes compositores de Música Popular Brasileira (MPB).
A morte de Aldir pôs fim a uma amizade e parceria musical com mais de cinco décadas de puro brilhantismo. Ao lado de João Bosco, surgiram canções imortais. “O Bêbado e a Equilibrista”, “Dois pra Lá, Dois pra Cá”, “Linha de Passe”, “Mestre-Sala dos Mares”, “Corsário”, Bala com Bala”, “Falso Brilhante".
Sem chão, João Bosco pediu desculpas por não ter condições de falar da partida do amigo. A dolorida nota no perfil do Instagram foi breve e dilacerante. “Aldir foi mais do que um amigo pra mim. Ele se confunde com a minha própria vida. A cada show, cada canção, em cada cidade, era ele que falava em mim”, afirmou.
O parceiro prometeu fazer a obra de Aldir ecoar e prosseguir. “Perco o maior amigo, mas ganho, neste mar de tristeza, uma razão para viver: quero cantar nossas canções até onde eu tiver forças. Uma pessoa só morre quando morre a testemunha. E eu estou aqui pra fazer o espírito do Aldir viver”, desabafou.
Blanc também criou parceria com outros artistas de semelhante peso. Maurício Tapajós (com quem gravou “Aldir Blanc e Maurício Tapajós’’, de 1984), Guinga, Edu Lobo, Roberto Menescal, entre outros. Foi interpretado por vozes femininas sem igual. Clara Nunes (1942-1983), Maysa (1936 - 1977) e Elis Regina (1945-1982).
Elis, por sinal, é outra imortal presença a catalisar a força poética de Aldir. Pura entrega em discos como “Elis” (1972), “Falso Brilhante” (1976) e “Essa Mulher” (1979). Esse último reserva um hino contra as injustiças da face ditatorial do País, “O Bêbado e A Equilibrista”. Outras crias cantadas por Elis foram “Ela”, “O Mestre-Sala dos Mares”, “Caça à Raposa” e “Agnus Sei”.
A cantora portuguesa Maria João, que homenageou o poeta com o disco-tributo de 2017, “A poesia de Aldir Blanc”, usou as redes para se pronunciar. Maria João citou o verso de “Nação” e foi direta. “A minha tristeza não tem fim! O meu amor e encantamento pela sua sublime poesia é para sempre! Vou cantá-la sempre!”, defendeu a artista.
Para o diretor do Festival Choro Jazz, Ivan Capucho, o País testemunha partida irreparável. “Era um gênio da raça, da poesia de nosso cotidiano”, avalia o produtor. Capucho lamenta o momento difícil, mas opta por defender que a arte resiste. É preciso continuar lutando para que a chama de criadores como Aldir não se apague.
.“O Aldir tem uma importância enorme para a música brasileira, para o Choro Jazz foi um gigante, pois teve grandes parceiros dele conosco como João Bosco, Guinga. A música está de luto com a perda de um mago da poesia e das palavras”, completa Capucho
Literatura
Aldir publicou “Rua dos Artistas e Arredores” (1978), “Porta de tinturaria” (1981), "Brasil passado a sujo" (1993), "Vila Isabel - Inventário de infância" (1996) e "Um cara bacana na 19ª" (1996). Consta na antologia "As cem melhores crônicas brasileiras" (2007), organizada pelo jornalista Joaquim Ferreira dos Santos.
Com Bosco, emplacou algumas canções na trilha de abertura de novelas e séries. Casos de “Doces Olheiras” (novela Gabriela, da TV Globo, em 1975), “Visconde de Sabugosa” (para O Sítio do Pica-Pau Amarelo, em 1977), “Coração Agreste” (em Tieta, de 1989), “Confins” (em “Renascer”, de 1993), “Suave Veneno” (na novela homônima, de 1999), “Chocolate com Pimenta” (tema da novela homônima de 2003), “Bijuterias” (minissérie “O Astro”, de 2011).
Cearenses lamentam
A música cearense também busca palavras de conforto na fala de dois compositores e cantores. Para Edinho Vilas Boas e Riccelly Guimarães, o carioca é uma referência na forma de criar e cantar o mundo. “O Aldir é um anjo das palavras, um escultor. É um delírio em movimento que nunca para de criar, de se reinventar. É uma matriz de tantos Brasis que existem e percorre tantos caminhos que é um dicionário ele mesmo, sozinho, pra tanto desvendar de sentidos, que ele foi descobrindo e me fez despertar”, compartilhou Guimarães.
Já Vilas Boas descreve que se trata de um divisor de águas na carreira de muita gente que compõe e tem um trabalho autoral. “Acredito que ficarão para a eternidade. Então é isso que eu desejo ao Aldir Blanc, a eternidade”, dividiu o músico cearense.
Voz de uma nova geração da MPB, Marcos Lessa encontra nas composições do carioca conexões profundas com as raízes brasileiras, como na memorável “Querelas do Brasil”, gravada por Elis Regina.
“Aldir Blanc escreveu também que o 'Brazil não conhece o Brasil'. Em dias como hoje, eu lamento muito. Pela minha geração. Por muitos da minha idade não conhecerem a grandeza desse cara que é um dos maiores nomes não só da música brasileira, mas da cultura brasileira”, apontou o cearense.
A morte do mestre, explica Lessa, nos questiona o legado que compositores deixaram e de que forma os artistas mais jovens podem continuar essa obra. “Ele se vai em matéria, mas deixa uma obra incrível gravada nas vozes dos maiores cantores da música brasileira”, reverencia.