A carreira de Kristen Stewart é, no mínimo, curiosa. Filha de profissionais ligados ao audiovisual – a mãe é cineasta e o pai, produtor de TV –, se tornou figurinha tarimbada nos corredores de estúdios, atuando em filmes desde muito cedo. Quem não recorda da atriz ao lado de Jodie Foster em “O Quarto do Pânico” (2002), de David Fincher? Ou em “Ninguém segura essas crianças”, de Bart Freundlich, no qual contracena com Max Thieriot e Corbin Bleu?
Apesar da precocidade e da galeria de trabalhos ainda tão jovem – na sequência, ela protagonizou produções elogiadas, a exemplo de “O Silêncio de Melinda” (2004) e, já adolescente, “Na Natureza Selvagem” (2007), além de vários outras – foi mesmo em “Crepúsculo” que a artista ganhou os holofotes do mundo, para o bem e para o mal. Com a saga vampiresca juvenil, Stewart passou, num átimo, de quase anônima à badalada estrela. De promissora intérprete a meme incorrigível.
Você mesmo já deve ter visto um painel com o rosto da atriz exibindo a mesma expressão enquanto são atribuídos a ela sentimentos como dor, alegria ou medo. À época do lançamento dos filmes da franquia, não faltavam comentários do gênero. Pelo contrário: pululavam em inquieto movimento, tanto por parte do público quanto da crítica especializada. Alegava-se que Kristen exibia uma crescente apatia diante das câmeras, prejudicada por indisfarçáveis maneirismos em cena: boca entreaberta, mexidas descontroladas no cabelo, onipresentes mordidas no lábio inferior. Exagero? Limitação artística? Segue a lista.
Corta para 2021. É a 78ª edição do Festival de Cinema de Veneza, um dos mais importantes do segmento. Após a exibição de “Spencer”, nesta sexta-feira (3) – novo filme do chileno Pablo Larraín, no qual Stewart interpreta a princesa Diana (1961-1997) – uma acalorada recepção corteja a atuação da americana. Entre os destaques, um desempenho transformador, conforme destacou a revista Variety, e interpretação “totalmente atraente”, na descrição do britânico The Guardian. O burburinho é de indicação ao Oscar. Será?
Se a estatueta dourada pousará ou não nas mãos da artista, pouco importa. Mais relevante é afugentar a nuvem indecorosa que insiste em pairar sobre Stewart. A aclamação no Lido apenas confirmou o que há tempos já é realidade: não cabe mais associar a imagem da atriz à insossa mocinha de “Crepúsculo”. Estamos diante do ponto alto da carreira de uma personalidade que, cada vez mais, para além da bolha cinematográfica, tem sido apontada como voz e postura de toda uma geração.
Entre o cult e o mainstream
Talvez o que mais impressiona no caminho pavimentado por Kristen seja a perspicácia com a qual ela moldou a própria trajetória profissional. Enquanto atuava na série de cinco filmes pela qual ficou mais conhecida, por exemplo, a atriz nunca desgrudou o olhar de projetos independentes. Foi nesse meio, inclusive, onde encontrou subsídios para crescer e ganhar melhor projeção, contornando as ferrenhas críticas.
Aconteceu ao integrar o elenco de “Corações perdidos” (2010), de Jake Scott – pelo qual ganhou um Bafta, considerado o Oscar britânico; “Na Estrada” (2012), do brasileiro Walter Salles, com retorno positivo em Cannes; e até mesmo “Férias frustradas de verão” (2009), de Greg Motolla, filme menor que, por outro lado, selou a bem-sucedida parceria com Jesse Eisenberg – a propósito, outro intérprete cuja atuação parece incomodar a audiência.
Passado o “furacão Crepúsculo”, ganhou notoriedade sobretudo a felicíssima dobradinha forjada com o francês Olivier Assayas, em “Acima das nuvens” (2014) e “Personal Shopper” (2016) – ambos reverenciados na Croisette. O primeiro, inclusive, rendeu a ela o prêmio César Awards em 2015 na categoria “Atriz coadjuvante”, o que a tornou a primeira americana a receber a honraria e consolidou sua imagem como uma das mais queridas em Cannes.
Não para por aí. Também dividiu tela com a gigante Julianne Moore, em “Para sempre Alice” (2015); entregou outra elogiada performance ao protagonizar “Lizzie” (2018), de Craig Macneill; e sensibilizou o público ao estar em “Equals” (2015), de Drake Doremus, filme ambientado num futuro em que uma nova raça de seres humanos é pacífica, justa e (olha só!) não possui mais emoções.
Nenhuma dessas produções e reconhecimentos, porém, a afastou das sessões pipoca. Em 2019, encarnou Sabina Wilson no remake de “As Panteras”, com direção de Elizabeth Banks. Por sua vez, no ano subsequente, o terror subaquático “Ameaça Profunda”, de William Eubank, a trazia de cabeça raspada, bem longe da candura engessada de Bella – decerto numa tentativa de afirmar, com todas as letras, que Stewart e Swan são mesmo diferentes em tudo.
Escalada consolidada
E assim, por entre uma diversidade de gêneros cinematográficos, parceria com realizadores competentes e escolha de papéis multifacetados – além de participações em projetos de outras naturezas, como o clipe de “Ride 'Em On Down”, dos Rolling Stones, em 2016 – Kristen passa a ocupar os tabloides novamente, desta vez com toda a pompa e graça.
Não é a primeira vez que a atriz se destaca em uma cinebiografia, contudo. Em 2010, ela interpretou a guitarrista Joan Jett no longa “The Runaways - Garotas do Rock”, chamando a atenção não apenas pela assombrosa semelhança com a cantora e compositora americana, mas também pela desenvoltura em cenas de fúria e tensão.
Já no ano passado, interpretou a atriz Jean Seberg (1938-1979), considerada uma das musas da Nouvelle Vague francesa, em “Seberg contra todos”, de Benedict Andrews. Ainda que a performance de Stewart tenha sido ovacionada nos dois filmes, nenhuma das produções foi bem aceita pela crítica, o que eclipsou um maior alcance de ambas.
Agora, não. Kristen chega, de fato, aclamada no território da sétima arte, estimulada também por quem se tornou no plano pessoal. Bissexual assumida, ela tem levantado cada vez mais discussões acerca da representatividade no cinema e na sociedade como um todo – viralizou o vídeo em que confrontou o ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, ao vivo em um programa de TV, por exemplo.
E segue investindo numa outra perspectiva de trabalho junto às câmeras, dessa vez por detrás delas, já tendo dirigido os curtas “Come Swin” (2017), exibido no Festival de Sundance; e “Crickets” (2020), para o projeto “Feito em casa”, da Netflix.
A próxima, e já celebrada, estação é em “Spencer”, com previsão de lançamento em 5 de novembro nos Estados Unidos e ainda sem data no Brasil. Na coletiva do filme, Stewart afirmou que nunca se sentiu tão livre em um papel. A julgar pelos passos dados, poderia traçar o mesmo paralelo com a própria vida.