“A mulher tem que se colocar com força contra o negacionismo”, afirma Heloisa Buarque de Hollanda

Neste 8 de março, a escritora paulista faz o lançamento virtual do livro “As 29 poetas hoje”, que inclui poesias de quatro cearenses na seleção, e convoca à luta pela palavra

Entre o contexto ditatorial de 1976 e o conservador de 2021, uma movimentação cultural em particular atraiu a professora, crítica literária, ensaísta e editora Heloisa Buarque de Hollanda: a resposta contundente da poesia. Não fossem os poetas que driblavam a censura há 45 anos para falar daquele momento político, ou as poetas que hoje reforçam nas próprias letras e corpos os direitos das mulheres, perderíamos uma parte significativa da história brasileira, e foi isso que Heloisa não permitiu aos 36 nem permitirá aos 81 anos de idade.

“Eu tive um susto nas duas ocasiões. Na primeira, eu fiquei apaixonada por aqueles poetas que começaram a falar numa hora que ninguém falava,  e depois com essas meninas, que tomaram o bastão. O que tem de mais fascinante é a diversidade entre elas”, pontua, contextualizando as duas publicações que organizou: “26 poetas hoje” (1976) e “As 29 poetas hoje” (2021), esta última com lançamento virtual neste 8 de março, às 18h, no YouTube da Livraria Megafauna e no Facebook da Companhia das Letras.

“Naquele você tem uma fala masculina, branca, de classe média. Agora, são mulheres, mas são milhares: indígenas, negras, nordestinas, sudestinas. Uma multiplicidade de vozes, e cada uma com seu ponto de vista, com seu lugar de fala, com seus problemas, com suas dores, é espantoso! Eu sou apaixonada por elas e por essa poesia que eu acho do capeta!”, confessa, entre risos, a organizadora.

“O Ceará é minha pátria”

Vale ressaltar que quatro dessas 29 vozes selecionadas para o novo livro são cearenses, o que não é exatamente uma surpresa, tendo em vista a longa relação de Heloisa com o Estado. Nenhuma delas a pesquisadora descobriu na Internet, por exemplo, ainda que essa ferramenta tenha facilitado o encontro com parte das outras poetas que compõem o novo livro. Eventos literários e publicações a levaram aos nomes de nina rizzi, Jarid Arraes, Érica Zíngano e Dinha.

Mas muito antes dessas escritoras, ela conviveu também com a autora de O Quinze. “Eu fiquei aí com a Rachel de Queiroz tempos. Sou doida por ela, José de Alencar, sou doida pelo Ceará, não adianta, é meu estado predileto, todo mundo sabe. Fiz uma pesquisa grande aí com as matriarcas nordestinas. Isso para o nosso feminismo é muito importante, porque mostra que as nossas mulheres do período colonial já eram fortes. Elas não eram fraquinhas, elas já eram arretadas. Mas essas quatro aí são muito especiais também”, partilha.

Entre as poetas contemporâneas cearenses e Rachel, porém, ela acredita que não há um diálogo direto. “O momento é outro. Acho que só dialogam no sentido do poder, do empoderamento. A Rachel era uma mulher muito poderosa, naturalmente poderosa, e essas meninas também”, acredita.

“A diversidade se impôs”

Ao lançar um olhar sobre o Brasil que lê ou deixa de ler essas mulheres, Heloisa é taxativa: “Eu acho que sempre deixou de ler, foi silêncio total e até hoje eu vejo que tem muito preconceito. As pessoas às vezes trabalham isso como uma necessidade: tem que botar uma negra, uma indígena, uma trans, né? Eu acho que isso também é válido, porque tem que ter mesmo, a gente tem que brigar para todo mundo falar. Mas não foi o meu caso. Meu caso foi trabalhar muito com texto e eu escolhi os melhores. É mais bonito ainda: a diversidade se impôs, e, quando eu fui ver, tinha diversidade”, explica.

Ela atribui esse “apagão” brasileiro ao fato de a literatura ainda ser considerada “uma arte de elite”, mais difícil de quebrar do que o castelo da música. Mesmo o reconhecimento de autoras negras e periféricas como cânones literários, a exemplo de Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo, segundo a escritora paulista, ganha mais força apenas com a chamada quarta onda do feminismo.

“Esse feminismo da quarta onda me parece sair das marchas de 2013. Não tem liderança nenhuma, é bastante horizontal, é uma articulação. Você tem o uso do corpo na própria palavra, com slams, saraus. O corpo impera e também você tem essa coisa da multiplicidade que não tinha antes. Essa linguagem é muito deste tempo da Internet. Você relata uma coisa e depois as outras mulheres retratam de novo a mesma coisa. Então, não é um coletivo, mas o eco de uma voz. Parece uma multidão de ecos, é muito bonito isso, a coreografia dessa política, que se reflete demais na poesia”, analisa Hollanda.

“Tem que mexer com a estrutura”

Os diferentes feminismos, aliás, são vistos com bons olhos pela professora, que não admite a teoria do enfraquecimento pela divisão. “Acho que é o contrário, fortalece, porque o que acontecia era uma mulher branca falando e isso não representava ninguém. Agora você tem uma multiplicidade de vozes, mas também uma multiplicidade de problemas, de questões, de demandas, de experiências sociais muito diferentes”, analisa.

A perspectiva decolonial, descolada dos padrões eurocêntricos, é, inclusive, a ótica sob a qual ela defende o desbravar da cultura no Brasil atualmente. “Não dá pra você sair falando que nem um francês, que não passou por essa destruição da colonização. Então a coisa decolonial é a única forma de você ver a cultura hoje, a outra é bonitinha, mas não representa. E essa poesia negra, indígena, tá falando disso”, enfatiza a crítica literária.

Para Heloisa, já não é mais hora de apenas brigar contra o sexismo e o racismo, e sim de acabar com essa estrutura que forma todos os padrões sociais de comportamento. “O sujeito branco vai ter que desistir dos privilégios e tem que carregar junto todo mundo, dividir sua posição, suas redes, suas circunstâncias. Tem muita coisa a ser feita e eu acho muito bonito que as pessoas estão começando a prestar atenção”, avalia.

“A poesia nova é toda uma luta”

Neste 8 de março, o segundo em meio à pandemia de Covid-19 no País, não há outra palavra que simbolize a data para Heloísa que não a luta. “Eu acho que esse governo está estimulando uma política assassina com a pandemia. As mulheres lideram as famílias e a gente tem que se colocar com força contra o racismo, contra o sexismo e contra o negacionismo”, defende.

Enquanto aguarda a segunda dose da vacina e conclui o livro sobre mulheres na literatura, no cinema e na música dos anos 1960 e 1970 que não se consideravam feministas, ainda que atravessadas pelo feminismo, Heloisa faz um apelo:

“Vamos nos vacinar e ficar quietos, se não a gente mata o Brasil inteiro.  É uma responsabilidade nossa também essa pandemia, que pode ser evitada, podia ter sido evitada já, mas tende-se a produzir uma catástrofe gigantesca e a gente não pode ficar assistindo e xingando o presidente só. Acho que tem que agir mesmo. E a poesia nova é toda uma luta, né?”, provoca, com a inquietação de uma mulher que jamais comungará com o silenciamento.

Livro

As 29 poetas hoje
Várias autoras
Organização: Heloisa Buarque de Hollanda
Companhia das Letras
2021, 254 páginas
R$ 69,90

Serviço

Lançamento do livro “As 29 Poetas Hoje”, com Heloisa Buarque de Hollanda e convidadas. Nesta segunda-feira (8), às 18h, ao vivo no YouTube da Livraria Megafauna e no Facebook da Companhia das Letras.