Um dos maiores clássicos gestados e publicados em solo cearense, o romance "A Fome" completou 130 anos em 2020. Escrita pelo cientista, industrial, farmacêutico e literato Rodolfo Teófilo (1863-1932), a obra atravessou o tempo colhendo os louros de permanecer oportuna e atual, suscitando reflexões sobre uma diversidade de temáticas do ontem e do hoje.
Neste domingo (31), será possível mergulhar com profundidade nesses aspectos a partir de um bate-papo virtual sobre o livro. O momento acontece às 18h, com transmissão pelo YouTube, e contará com a participação do Prof. Dr. Charles Ribeiro Pinheiro e da Profa. Ma. Lílian Martins. A tradução em Libras fica por conta de Liliana Ripardo Alves, pedagoga, intérprete e tradutora de Libras pela Associação dos Profissionais Intérpretes e Tradutores da Língua Brasileira de Sinais (APILCE).
Durante a live, será lançado o "Almanaque A fome 130", revista digital com arte do quadrinista Luís XIII e pesquisa e textos realizados por Charles Ribeiro. Todas as atividades do evento integram a campanha cultural "A Fome - 130 anos: Rodolfo Teófilo Romancista", fomentada com recursos da lei Aldir Blanc por meio da Secretaria da Cultura de Fortaleza.
O projeto ocorre desde dezembro do ano passado, quando foi realizado um curso sobre o romance, ressaltando Rodolfo Teófilo como um escritor-leitor, além de postagens e vídeos a respeito do livro. A campanha culmina com o lançamento do almanaque digital, que será disponibilizado de forma gratuita no site do projeto. O trabalho se vale da linguagem visual das histórias em quadrinhos como forma de ampliar a divulgação da obra homenageada, bem como dos demais títulos ficcionais assinados por Rodolfo.
História de martírio
Ficcionalização dos dramas ocorridos durante a grande seca que assolou o Ceará de 1877 a 1879, "A Fome" foi publicado em 1890, narrando o aflitivo êxodo de uma família em direção à Fortaleza. A travessia era uma tentativa de fugir da impiedosa seca que se alastrara pelo interior do Estado.
Nessa atmosfera de martírio coletivo, o protagonista Manuel de Freitas e os parentes, sem água e comida, passam por inúmeros episódios de provação até chegar à Capital. Quando assentam o pé na cidade, deparam-se com o caos: Fortaleza está repleta de retirantes empesteados por uma devastadora epidemia de varíola.
Em entrevista ao Verso, Charles Ribeiro, coordenador do projeto em celebração à obra, situa que "A Fome" é um livro forte, tendo suscitado tanto comentários positivos quando negativos na época do lançamento. Os primeiros dizem respeito a seu caráter engajado, com o desejo de retratar tristes episódios da história cearense; por sua vez, o uso da linguagem extremamente cientificista e rude torceu o nariz de uma grande parte de leitores. "Aplaudido pela sinceridade e censurado pelas deselegâncias da escrita", resume o estudioso.
"A polêmica do romance reside na maneira narrativa que explora o tema da grande seca de 1877. O seu objetivo é chocar o leitor por meio das fortes cenas descritas de modo explícito, quase fotográfico. Como homem de ciências, Rodolfo Teófilo abraçou o realismo-naturalismo como forma de expressão literária. Então, como um cientista, ele tenta tirar o homem do mistério, tenta decifrá-lo por meio de seu comportamento, analisando a sua herança genética e o meio em que vive", completa.
Não à toa, é possível conferir no texto uma série de situações cujas descrições chocam pela crueza. Como exemplos, é possível citar um suicida que tem as vísceras devoradas por um cão, e homens brigando até a morte por sacas de farinha. "A tese que Rodolfo Teófilo expressa em seu romance é que o ser humano, assolado pelo estado extremo de fome e sede, fica desumanizado e regride a um estado animalesco, capaz de atitudes inimagináveis e hediondas, como roubar, matar e até praticar o canibalismo. Em suma, torna-se bestializado", explica Charles.
Discussão contemporânea
Também participante da live, a professora e jornalista Lílian Martins sublinha que ler a obra-prima de Rodolfo Teófilo hoje é ir ao encontro de uma lamentável panorama. "Vivemos em um país que havia erradicado a fome e tirado milhões de brasileiros da extrema pobreza; porém, desde 2017, com o fim das políticas públicas em benefício dos mais carentes e do sucateamento dos serviços públicos, voltamos a fazer parte do mapa da fome e somos a cidade mais desigual do Nordeste", destaca. "Por isso ler Rodolfo Teófilo na atualidade é nos depararmos com uma triste realidade, que segue atualíssima".
Lílian considera que se, atualmente, somos diferentes da realidade descrita no romance – ao narrar os corpos empilhados ao redor do centro de Fortaleza – por outro lado permanecemos iguais na indiferença em relação ao mesmo drama alheio e às mortes silenciosas dos flagelados que vivem nas ruas de todas as urbes do Brasil. "Por essas e outras razões. 'A Fome' é uma obra necessária e reflexiva sobre o Ceará de ontem e de hoje e, por conseguinte, sobre o Brasil onde queremos viver, e não morrer de fome".
A pesquisadora lembra ainda que, ao cursar Letras, o professor havia falado pouco ou quase nada sobre Rodolfo Teófilo. Mas um amigo citou "A Fome", o que despertou a curiosidade de Lílian. A partir dali, ela se dedicou a ler o livro e hoje considera que foi uma das leituras mais desafiadoras que já fez.
"A minha dica é que, após os dois primeiros capítulos, você está pronto para vencer o romance. Não por ser uma obra ruim, mas por ser um livro rico em descrições da seara da biologia, da medicina, características próprias do romance realista/ naturalista", pontua. "Quem gosta de ver corpos sangrando em programas policiais nem passa perto das descrições sobre o estado de putrefação dos corpos narrados por Rodolfo Teófilo. Ele foi e é de uma genialidade e de uma literariedade ainda hoje impressionantes".
Conversa abrangente
Na live de domingo, Lílian também afirma que, entre outros assuntos, comentará sobre a cearensidade de Rodolfo Teófilo. O autor nasceu na Bahia, mas muito cedo chegou ao Ceará. Inclusive, é famosa a frase em que diz "sou cearense por que quero". "Como pesquisadora que trabalha com a categoria do 'pertencimento', Rodolfo é um caso especial e simbólico em nossa Literatura Cearense", diz.
Além desse aspecto, a estudiosa igualmente vai elencar algumas curiosidades sobre Teófilo que, além de escritor, é o inventor da cajuína e foi um exímio sanitarista, cujo ofício ajudou no combate da varíola. Sob outro espectro, Charles Ribeiro explica que o bate-papo não deixará de discutir a tradição dos romances sobre seca na literatura brasileira, a exemplo de "O Quinze", de Rachel de Queiroz, cujo lançamento completou 90 anos também no ano passado.
"O interessante também é situar Rodolfo Teófilo em seu contexto histórico e literário da cidade de Fortaleza, da passagem do século XIX e início do XX. Outro ponto importante é discutir que ele não foi um escritor isolado. No fim do século XIX, a capital cearense já contava com diversos jornais, agremiações literárias e artísticas, e Teófilo foi ativo em vários grupos literários, tendo atuado também numa vastidão de jornais e periódico", dimensiona o professor.
Nesse movimento, Charles comemora o alcance das discussões sobre o importante autor e adianta que, neste ano, vai colocar em prática várias ideias e projetos contemplando Rodolfo Teófilo e a literatura cearense, numa fusão entre literatura, história e quadrinhos. É esperar para conferir.
Serviço
Bate-papo virtual sobre os 130 anos do romance "A Fome", de Rodolfo Teófilo
Neste domingo (31), às 18h, no canal do professor Charles Ribeiro no YouTube
>> Saiba Mais: Lira Neto narrou trajetória de Rodolfo Teófilo em livro
Publicado em 1999, o livro “O poder e a peste – A vida de Rodolfo Teófilo", primeira obra assinada pelo escritor e jornalista cearense Lira Neto, narra toda a trajetória do famoso multiprofissional. Atravessando desde a infância do personagem, quando chegou ao Ceará vindo da Bahia, até a participação na campanha abolicionista e os estudos e esforços empreendidos no campo da Farmácia junto à população de Fortaleza, o título não é apenas a biografia de um homem, mas uma radiografia da capital cearense entre as últimas décadas do século XIX e as primeiras do século XX.
Em entrevista ao Verso, Lira Neto afirmou que foram quatro anos de pesquisa para conceber a obra. O biógrafo, inclusive, considera Rodolfo Teófilo como um grande pioneiro da saúde pública no Brasil. Uma figura quixotesca que, mesmo com todas as contradições que encarnava, pode ser olhado como um apóstolo da ciência, do saber especializado, da sensibilidade social.