O chamado "Massacre de Milagres" ocorreu numa operação policial para evitar o roubo de uma agência bancária, na madrugada do dia 7 de dezembro de 2018. A ação dos assaltantes foi sustada, mas a operação apresentou um saldo dramático: 14 mortos, sendo seis inocentes. Todos os policiais envolvidos na operação desastrosa, depois do inquérito regulamentar, foram denunciados pelo Ministério Público do Ceará (MPCE).
O fato provocou um questionamento da sociedade: até onde vai o cumprimento do dever e onde começa a execução de um crime? Talvez nenhuma outra atividade profissional se depare com esse dilema, com tanta clareza e veemência, como os agentes de segurança pública. Esses profissionais convivem com o perigo de vida ou morte, enquanto existe uma zona cinzenta, um limite impreciso e difuso, entre a obrigação de reprimir o crime e a legítima defesa.
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Para compreender essa situação delicada, um levantamento foi realizado por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), com dados oficiais prestados pela Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS).
Entre 2013 e 2018, o Ceará experimentou uma escalada de violência sem precedentes, que resvalou no aumento de Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLIs) e no número de mortes em razão de ocorrências policiais. Ao todo, foram 671 homicídios cometidos em serviço ou folga por agentes de segurança cearenses. No ano de 2013, 41 pessoas morreram pelo braço armado do Estado; em 2018, foram 221. Um aumento de 439%.
No Brasil, embora a violência também tenha crescido com a fortificação das facções criminosas (que com o passar dos anos foram tomando territórios nos estados), em igual período, o aumento foi de 178,4% (2.212, em 2013, para 6.160, em 2018).
Justificativas
"Hoje, no Brasil, e especialmente no Ceará, há uma confusão em tratar políticas de Segurança Pública como se elas se limitassem a uma política de intervenção policial", considera Luiz Fábio Paiva, sociólogo do Laboratório de Estudos da Violência (LEV), da Universidade Federal do Ceará (UFC). Conforme o pesquisador, a atual gestão é marcada pela intensificação do aparato militar, em especial a partir do fortalecimento do Batalhão de Policiamento de Rondas e Ações Intensivas e Ostensivas (BPRaio).
Segundo Luiz Fábio, o foco da política de segurança pública cearense é o enfrentamento ao crime. "Isso vai ter um impacto na ação policial e nas suas consequências que, como os números demonstram, têm avançado de maneira significativa", afirma, ao ressaltar que também surgem problemas como a morte de pessoas envolvidas em crimes, além de inocentes.
De acordo com a socióloga Glaucíria Mota Brasil, do Laboratório de Estudos da Conflitualidade e da Violência (Covio), da Universidade Estadual do Ceará (Uece), os governos estaduais e federais vêm realizando políticas públicas equivocadas na área. "A maneira dessas polícias atuarem a partir de elaboração e proposta de políticas públicas privilegiaram o enfrentamento, a repressão e a ostensividade. O que reverbera hoje é que os governos vêm tentando acertar, mas acabam caindo na armadilha de repaginar o modelo repressivo", explica.
Após 11 dias sem respostas, a assessoria da SSPDS não permitiu que entrevistas fossem realizadas com integrantes da cúpula de Segurança sobre o assunto. Em nota, a Secretaria informou apenas que o crescimento de mortes por policiais "está relacionado ao aumento da resistência por parte dos criminosos, que reagem às abordagens policiais nas ruas".
A Pasta ainda acrescentou que há "um processo de aquisição em andamento de quase 600 espingardas calibre 12, que carregam projéteis letais e menos letais. O uso desse tipo de armamento permitirá o uso de munições diferentes a depender da análise do policial durante a ocorrência".
A Lei
Embora o sistema punitivo corrobore com o aumento de mortes em 2018, os casos de intervenção encontram respaldo jurídico no Código Penal e no Código de Processo Penal. Os textos garantem aos agentes, respectivamente, a excludente de ilicitude - em casos onde há a comprovação da legítima defesa - e a exigência da formulação do auto de resistência, elaborado com informações dos policiais após o cometimento do homicídio.
Apesar de acreditar ser natural o aumento de números de intervenção policial no Ceará, uma vez que há um crescimento da violência, o promotor Gustavo Henrique Cantanhêde considera importante a retaguarda legal garantida aos policiais. "Ninguém está dizendo que a ação é lícita ou ilícita, cada caso vai ter que ser analisado. Mas penso que os agentes precisam ter um respaldo jurídico para agir, e há situações em que a violência é a única resposta", diz. Cantanhêde integra o Centro de Apoio Operacional Criminal, Controle Externo da Atividade Policial e Segurança Pública (Caocrim), do Ministério Público do Ceará (MPCE).
Para Dermeval Farias, presidente da Comissão do Sistema Prisional, Controle Externo da Atividade Policial e Segurança Pública, do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), a lei garante que todo homicídio deve gerar um inquérito de intervenção. "Nós temos uma exigência legal de quando acontece uma morte, tem que existir uma investigação policial através de um inquérito que é encaminhado ao Ministério Público e que vai gerar ou o arquivamento por legítima defesa ou uma denúncia por um crime que foi cometido", explica o representante do CNMP.
Segundo o conselheiro, é difícil afirmar que o aumento percentual de mortes por intervenção no Ceará foi maior do que em âmbito nacional, em razão de problemas na alimentação de dados de outros estados, que podem ter gerado subnotificação. Contudo, ele ressalta que "não existe na legislação brasileira o estrito cumprimento do dever jurídico de matar na atuação policial". Conforme Dermeval Farias, a única forma de garantir a ilicitude de um homicídio por intervenção é por meio da legítima defesa.