Pela quarta vez, desde a madrugada de 12 de novembro de 2015, a cuidadora de idosos Edna Carla não escutou o filho Alef Souza pedir por comida no Dia das Mães. Até aquele ano, era comum o jovem de 17 anos querer bolo de brigadeiro, biscoito de goma e creme de galinha em momentos de festividades. Cada data comemorativa na casa da família Cavalcante, no Conjunto São Cristóvão, na Grande Messejana, era como um banquete - um aniversário até -, daqueles que as crianças lambem os dedos após ter experimentado a refeição predileta.
Isso ocorria todos os anos até aquela noite, quando Alef foi brutalmente assassinado por um bando de policiais militares encapuzados. O adolescente e outras dez pessoas foram executados sumariamente nas ruas dos bairros Curió e São Miguel, na Grande Messejana, no episódio que ficou conhecido como "Chacina da Messejana" ou "Chacina do Curió", na qual 44 policiais militares foram denunciados pelo Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE) por terem organizado a matança. Dos 11 mortos, oito eram jovens com idades entre 16 e 19 anos. Perfil comum de quem é "matável" por aqui.
"Eu costumo dizer que eu não pari filho pra Polícia matar. Por isso, a minha luta constante é a exoneração dos cargos, a condenação dos culpados, sim. Porque, se a própria Polícia diz que bandido tem que ser condenado, então quem mata, que é de dentro da Polícia, que é bandido, também tem direito da condenação", clama Edna Carla, ao apertar uma bandeira do Coletivo Mães do Curió, como se pudesse, assim, fazer justiça.
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Três meses antes de ser assassinado, Alef disse à mãe que sua intenção era servir o Exército, mas foi impedido no meio do caminho. "E ali, eu não só perdi o filho, perdi o sonho que eu tinha, perdi a confiança na Corporação. Porque, por mais que eu diga que existem policiais honestos, a gente sabe que a maioria deles, na favela, não são Polícia, são matadores do Estado".
Os números
Os nomes de Alef, Alisson, Jardel, Marcelo, Marcelo, Renayson, Patrício e Pedro, jovens vítimas da Polícia na Messejana, não constam nas planilhas da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS), obtidas com exclusividade, por meio da Lei de Acesso à Informação. Eles não foram mortos em razão de intervenções policiais, mas são exemplos de uma faixa etária prioritária de quem está mais suscetível à morte pela Polícia.
Entre 2013 e 2018, 319 jovens, entre 15 e 24 anos, foram mortos por agentes do Estado. O número representa quase metade (47,5%) de todas as pessoas assassinadas por policiais durante o período. Caso a idade considerada seja entre 15 e 29 anos (o que abrange os jovens adultos), o número de corpos da juventude estendidos no chão sobe para 417 (62,1% do total).
De acordo com a socióloga da Universidade Federal do Ceará (UFC) Geísa Mattos, que pesquisa movimentos contra o racismo e a violência policial, "a única política pública para os jovens no Estado é o que eles chamam de segurança pública, ou seja, é a mão armada do Estado. É pegar esses jovens e matar ou colocar dentro de uma prisão. Quando você não tem outra política pública, certamente essas mortes só irão aumentar".
Segundo a professora, "o Estado não protege as vidas dos jovens das periferias, ao contrário, ele é um dos principais responsáveis pela morte prematura desses jovens. Tanto quanto são os próprios agentes que estão matando, mas também quanto aquelas mortes que não são causadas diretamente pelo Estado, já que esses jovens não têm nenhuma proteção para ter suas vidas resguardadas", pontua.
Comunidade
A fim de reduzir o número de mortes nessa faixa etária, o Comitê pela Prevenção de Homicídios na Adolescência, da Assembleia Legislativa do Estado Ceará, recomendou ao Governo do Estado o fortalecimento de estratégias de segurança comunitária, promovendo a articulação entre os agentes de segurança pública e as redes de serviços socioassistenciais, uma vez que foi observada agressividade durante abordagens policiais com a juventude.
"A sociedade tem que ver o policial com respeito, e o policial tem que ver o cidadão com respeito. Hoje, é uma relação de medo mútuo, de confrontação. Temos que apostar em um modelo de policiamento de comunidade", ressalta o relator do Comitê, Renato Roseno. Conforme o deputado, há um estereótipo difundido de que os jovens são considerados perigosos. "Juventude não pode ser vista como um risco, tem que ser vista como possibilidade, como vida, como potência", afirma.
Dendê
Como forma de superar o produto que o meio impõe aos jovens de periferia, o Coletivo juvenil Dendê de Luta, no bairro Edson Queiroz, foi formado há um ano e quatro meses. Michael Gomes, 20, e outras 21 pessoas ocupam praças, equipamentos e espaços da comunidade do Dendê - região que faz parte da Área Integrada de Segurança (AIS) 7, com bairros como Aerolândia e Passaré -, que teve a maior quantidade de jovens mortos por agentes de segurança. Em seis anos, foram 21.
"A Polícia parece que é treinada pra guerra. De acordo com o Estado, é uma guerra às drogas, mas que se depara com a criminalização da pobreza. Em dado momento da vida, nós, jovens, já sofremos com abordagem violenta. Parece que eles se embasam por um estereótipo e tratam todos como se fossem bandidos de alta periculosidade", argumenta Michael. Segundo ele, o jovem periférico é violentado "primeiro, por uma violência invisível do Estado, quando não chega com oportunidade. Segundo, quando a Polícia entra para executar o nosso povo, a nossa juventude". Faixa etária que, além de necessitar de políticas públicas, luta todos os dias para continuar simplesmente vivendo.