Em três anos, 19.261 adolescentes infratores foram apreendidos no CE

Conforme estatísticas da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social, os atos infracionais mais comuns são o tráfico ilícito de drogas e o roubo a pessoa. Ambos costumam ter como finalidade o autossustento. Por trás dos números, histórias de jovens em conflito com a lei

Quando um adolescente comete um ato infracional, falharam a comunidade, a sociedade e o poder público na prevenção dessa violência". Partindo da afirmação do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca) e com a análise dos números de adolescentes que foram apreendidos por atos infracionais, os erros acontecem todos os dias: pelo menos, 19.261 vezes de janeiro de 2017 a outubro deste ano, com a apreensão de jovens.

Os milhares de enredos de jovens envolvidos no 'mundo do crime' estão, principalmente, nas periferias da Capital. O perfil dos menores infratores é historicamente o mesmo: sexo masculino, negro, baixa renda e cercado por conflitos familiares. Conforme dados da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS), em 2017 foram apreendidos 7.532 jovens; em 2018, 6.940; e 4.789 neste ano.

Nos autos de apreensão registrados pela Pasta se destacam como crimes mais comuns cometidos pelos adolescentes o tráfico ilícito de drogas e roubo a pessoa. Uma destas ocorrências foi protagonizada por Igor (nome fictício). Foram quase 500 dias internado em dois centros. Primeiro, o jovem de 17 anos foi alocado no Centro Educacional Patativa do Assaré. As horas seguidas à captura e os 57 dias iniciais vividos ali mostraram a ele o começo de um período sombrio que ele passaria a protagonizar.

Igor é o segundo mais novo de um grupo de cinco irmãos. Hoje em liberdade, ele detalha tudo que viveu desde o dia 23 de janeiro de 2018. O jovem trabalhava em uma oficina. Disse que foi demitido após o Conselho Tutelar falar para o patrão que ele não deveria estar ali, e sim na escola. Ele conta ter ficado sem dinheiro e, por isto, decidido praticar crimes.

Em 23 de janeiro de 2018, foi até a Avenida Aguanambi, se aproximou de um carro parado no semáforo, aproveitou os vidros baixos e pegou a bolsa da motorista. Fugiu. Nos arredores do Estádio Castelão, foi interceptado pelo Batalhão de Policiamento de Rondas Intensivas e Ostensivas (BPRaio):

Eu tava só. Tava sem dinheiro. Foi 157. Roubo. Apanhei várias vezes. Fui para a triagem, depois tomei banho, levei outra 'pisa' e fui dormir. Passou três dias e eu fui para o Passaré. Eu não sabia como era. Minha experiência lá dentro? Foi muito boa não...

A memória do adolescente recupera a rotina no local: "Eram duas alas, dois corredores: 12 dormitórios em cima, 12 embaixo. Lá no Passaré ficavam cinco em um dormitório, mas era para caber só três. Era difícil nós sair, nem para ter aula. Eles não deixavam. O professor ia, mas voltava porque ninguém deixava a gente sair para estudar. Um quartinho com grades. Um dormia no chão. Alimentação chegava, minha mãe ia uma vez na semana".

Intimidação

Mário (nome fictício) conta que a proposta para ajudar uma facção criminosa partiu de amigos. Não chegou a ser 'batizado', mas era simpatizante da facção criminosa Comando Vermelho (CV). Quando fala sobre o que fez e os porquês de ter feito, é interrompido pela mãe, aposentada, que até hoje diz não entender os motivos do filho.

"Comecei a sair com uns amigos para as festas. Comecei a me envolver. Foi a Polícia Militar que me pegou. Eu tava em casa, na Serrinha. Foi tráfico. Eu guardava a droga. Eles me entregavam e eu tinha que ficar responsável pela contabilidade. Tirava uns R$ 170, R$ 200, por dia. A Polícia me levou para outro canto e quando abriram o porta-malas da viatura começaram a me bater", disse o adolescente de 15 anos.

Segundo Mário, quando ele chegou à Perícia Forense do Ceará (Pefoce) para ser submetido a um exame de corpo de delito, foi ameaçado pelos militares: "se eu contasse, ia apanhar mais. Fiquei quieto na minha e depois me levaram para a triagem na DCA. O juiz me aconselhou umas coisas e depois me liberou. Fiquei nessa liberdade assistida. Não quero mais fazer o que eu fazia antes. Fazia por dinheiro. Naquele tempo eu pegava dinheiro e ficava gastando. Queria para comprar minhas coisas, não ficar dependendo dos outros".

Ouvindo a conversa, a mãe pergunta: "o que tanto ele precisava comprar se eu dava casa, comida e roupa lavada?". Ela diz saber que o filho era usuário de drogas, não vendedor. Diz também que proibia ele de "usar maconha", mas as ordens não eram obedecidas.

"Quando a Polícia chegou lá em casa e achou as coisas, eu quase morro do coração de decepção e preocupação. Nunca imaginei ver meu filho naquela situação. Eu expliquei a ele que se não enricar com o seu suor, é porque enricou com dinheiro sujo. A Bíblia e a lei dizem para usar o suor, que Deus ajuda. Ele não precisava disso, mas foi na folia dos outros... Mania de jovem", ponderou a aposentada.

Sentença

Mário teve a "sorte" de logo ir para a liberdade assistida. Igor não. Depois dos 57 dias no Centro Socioeducativo do Passaré, foi para o Centro Socioeducativo Canindezinho: "lá eu conheci o inferno", disse. Igor lembra dos momentos vividos no local, até o dia 16 de maio de 2019, quando voltou à liberdade, um mês após completar 17 anos.

"Eu apanhava direto lá na casa de sentença. A Polícia entrava, tirava tudo nosso, deixava todo mundo de calção. Às vezes os grupos de apoio entravam para fazer vistorias, mas às vezes só entravam e mandavam a gente ficar de calção. Isso era quando a casa tava agitada. Quando queimavam colchão. Eles queriam mandar a gente ficar de costas, ficar ajoelhado, humilhação. Aí os caras não gostavam e disputavam na peia".

Foram seis meses de cursos até voltar a ter "ficha limpa". Para Igor, "a chance de ressocializar lá dentro é 0%". Agora, ele já sabe que não quer mais voltar a nenhum centro socioeducativo, mas tem dúvidas do que exatamente esperar do futuro. "Graças a Deus tô trabalhando. Meu irmão tem um lava-jato, tô ajudando ele. Não sei uma profissão pra mim. Pode ser qualquer uma. Tenho vontade de fazer diferente".

Conduta

Aloísio Lira, superintendente de Pesquisa e Estratégia de Segurança Pública (Supesp), órgão vinculado à SSPDS, afirma que o perfil do jovem adolescente detido é similar ao de prisões em geral. Segundo ele, o Poder Público vem conseguindo chegar nas periferias onde os jovens são cooptados para o crime e, antes que cometam infrações, são beneficiados com ações sociais.

Por nota, a Polícia Militar do Ceará (PMCE) informou que "à Instituição cabe prevenir a prática do ato infracional e sua repressão, quando ele ocorrer. Significa que a PM é responsável pelo encaminhamento tanto de adultos quanto de crianças e adolescentes que praticam ações criminosas. Todos os direitos fundamentais da pessoa são garantidos com prioridade absoluta".

A PMCE destacou que atua nos centros socioeducativos somente em casos extremos, preservando os direitos dos adolescentes que estão em conflito com a lei. A Corporação disse, ainda, que os policiais são orientados a não usar nenhuma forma de violência desnecessária, mas que em casos de más condutas policiais, as vítimas denunciem.