O isolamento domiciliar em decorrência da pandemia levou casais a ficarem mais tempo juntos dentro de casa. Nos casos em que mulheres são vítimas de violência doméstica, na maior parte das vezes cometida pelos próprio companheiro e no lar, também significa mais tempo cercada pelo agressor e com liberdade vigiada. Os registros de denúncias de violência doméstica familiar recebidos pelo Disque 180 aumentaram em 2020. No entanto, menos medidas protetivas foram deferidas às vítimas. São mulheres cada vez mais ameaçadas e que permanecem perto dos criminosos.
Conforme levantamento do Instituto Igarapé, divulgado no dia 9 de dezembro, os indicadores de crimes contra mulheres durante a pandemia pioraram. Comparados os meses de março a junho de 2019 e igual período de 2020, a quantidade de ligações feitas de dentro do Estado do Ceará para o número 180 relatando violência doméstica aumentou 92%. Foram 533 no ano passado, e 1.026 neste ano.
O estudo também indicou que nos dois primeiros meses deste ano de 2020, quando ainda não havia isolamento social, seguidos por março, abril e maio, houve aumento de 16% nesses registros. Em contrapartida, também durante e devido à quarentena, caiu a quantidade de medidas protetivas deferidas a favor das vítimas de violência doméstica.
Dados do Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE) apontam que no Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher de Fortaleza foram deferidas 3.710 medidas protetivas de janeiro a novembro deste ano. Já em 2019 o número alcançado foi 5.875 no ano inteiro, e 5.547 até novembro. O comparativo revela queda de 33,1%.
Adaptação
Os meses de abril e maio, período de lockdown na Capital cearense, foram aqueles com baixa mais acentuadas: 184 e 199 medidas protetivas, respectivamente. A titular do Juizado, Rosa Mendonça, explica que até o mês de março de 2020 os números vinham dentro do esperado.
A partir do primeiro decreto do Governo Estadual sobre o isolamento, o Tribunal acreditou que o número de denúncias ia aumentar significativamente. Quando os registros começaram a cair, segundo a magistrada, o Judiciário se atentou que as mulheres não vinham conseguindo acionar as autoridades.
A juíza explicou que as denúncias feitas no 180 não chegam automaticamente à Justiça. Assim, dificilmente os números se assemelham. Rosa Mendonça destaca que antes da pandemia as demandas vinham por meio das delegacias ou do Ministério Público do Ceará (MPCE). Agora, também por telefone.
"No Ceará, houve uma redução drástica. Em abril, teve uma queda de 72% com relação a abril de 2019 de medidas. Então, nós constatamos que a mulher não estava denunciando, sem condições de acionar o Sistema de Justiça por medo do agressor e por medo da própria doença. Muitas vezes sem ter um telefone por perto e sem ter como sair. Então, nós abrimos canais para que as mulheres vissem que nós estávamos funcionando, mesmo que em remoto. É preciso dizer que a denúncia é importante, que a mulher não está só", ponderou Rosa Mendonça.
Silêncio
Renata Giannini, pesquisadora do Instituto Igarapé e autora do artigo "Violência contra mulheres: como a pandemia calou um fenômeno já silencioso", debatido no 14° Encontro Anual do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, participou do levantamento das denúncias feitas pelo 180. Segundo ela, quando observados outros indicadores existe a redução dos acionamentos das mulheres pedindo socorro, no entanto, ao observarem o 180, ficou percebido que por lá aumentou, porque essas denúncias não exigiam das vítimas que elas saíssem de casa.
"Não é como a pandemia afeta a segurança das mulheres. É como o isolamento afeta a segurança das mulheres. 0 180 não leva, necessariamente, a uma ação. Se há menos denúncias para a Polícia, menos casos são judicializados. É um ciclo vicioso. A violência contra mulheres, que já é um crime bastante subnotificado, se tornou ainda mais silencioso. Será se elas têm confiança nesses canais? Confiam no Estado? A maioria dessas mulheres tem a dependência econômica", alerta a especialista do Instituto Igarapé.
Ainda de acordo com a juíza Rosa Mendonça, o Tribunal de Justiça se prepara para implementar medidas protetivas online no início de 2021, com intuito de facilitar o acesso das vítimas a este direito.
"É importante dizer que a medida protetiva é um dos maiores ganhos da Lei Maria da Penha. É importante para evitar muitos feminicídios. O suspeito que descumpre a medida protetiva enseja a uma prisão e ele recebe um novo processo. Sabemos que a maior parte das mulheres mortas pelos companheiros nunca relataram as agressões às autoridades", garantiu a titular do Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher de Fortaleza.