Caso Zara: juízes se abstêm de julgar o processo de ex-gerente acusado por racismo contra delegada

O réu pelo crime nega as acusações e nunca chegou a ser preso. O Tribunal de Justiça do Ceará afirmou que o processo já teve a fase de instrução concluída, foi redistribuído para outra vara e está pronto para ser julgado

Um dos casos de racismo de maior repercussão nos últimos anos segue com desfecho processual pendente. Dois juízes das Varas Criminais da Comarca de Fortaleza se declararam suspeitos, ou seja, se abstiveram para processar e julgar a ação penal contra o ex-gerente da Zara, Bruno Filipe Simões Antonio.

Bruno é réu por racismo contra a delegada Ana Paula Barroso. O crime aconteceu em setembro de 2021, em Fortaleza, na loja Zara. Em abril de 2024 e junho de 2024, dois juízes, da 14ª e 15ª Vara Criminal, respectivamente, se declararam "suspeitos para processar e julgar o presente feito criminal".

Ainda em abril, a juíza da 14ª Vara Criminal disse que estavam suspeitos "também todos os colaboradores e servidores desta unidade (14ª Vara Criminal)" e pediu que a ação fosse redistribuída.

Os magistrados alegam "motivo de foro íntimo" que os impedem para prosseguir na causa. Em nota, o Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE) disse que a fase de instrução processual está finalizada e "agora os autos serão processados pelo Juízo da 16ª Vara Criminal, não sendo necessária uma redistribuição".

A reportagem entrou em contato com a defesa do ex-gerente, que não se posicionou até a publicação desta matéria.

Nos memoriais finais anexados ao processo, a defesa disse que "o acusado não recusou ou impediu o acesso da suposta vítima à loja Zara, bem como que o contato entre o acusado e a suposta vítima não resultou de discriminação ou preconceito de racial".

SOCIEDADE AGUARDA DESFECHO

Em setembro de 2023, o Ministério Público do Ceará (MPCE) apresentou as alegações finais pedindo pela condenação de Bruno Filipe. A promotora da 93ª Promotoria de Justiça de Fortaleza anexou aos autos que, para o MP, "a materialidade e a autoria delitivas estão comprovadas". 

Anteriormente, o órgão já tinha sido contra um Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) ao ex-gerente, que nunca chegou a ser preso pelo crime.

Os assistentes de acusação, advogados Leandro Vasques e Afonso Belarmino, destacam não criticar as declarações de suspeição dos magistrados, "afinal se deram por razões de foro íntimo que não precisam ser devassadas. Contudo, não só a vítima, mas a sociedade como um todo aguarda o desfecho do processo, pois a prática do racismo atinge a uma coletividade indeterminada de indivíduos".

"Ademais, a persecução penal demonstrou de forma indiscutível a diferença de tratamento oferecida a clientes brancos e à vítima, que é negra, principalmente, a partir da análise das imagens das câmeras de videomonitoramento da Loja Zara. Além disso, a instrução processual, com ampla colheita dos testemunhos, foi decisiva para demonstrar a materialidade delitiva, inclusive, o depoimento seguro da vítima não deixou pairar qualquer dúvida sobre a existência do crime de racismo.
Assistentes de acusação
Leandro Vasques e Afonso Belarmino

Os advogados destacam ainda que "acreditamos, por fim, que a prestação jurisdicional, na forma de uma sentença condenatória, se revelará pedagógica, na medida em que desencorajará práticas racistas e, ao mesmo tempo, estimulará que outras vítimas acreditem na justiça e busquem os meios legais sempre que se virem em situações semelhantes".

FILMAGENS

Na versão de Bruno Filipe e da loja Zara, Ana Paula foi impedida de permanecer no local porque estava com a máscara abaixo do queixo, o que não era permitido por prevenção ao contágio por Covid-19. Entretanto, o gerente atendeu normalmente uma cliente branca pouco antes de expulsar a delegada, negra.

A acusação se vale de imagens de videomonitoramento da loja, que capturaram o momento do crime e demonstram a diferença de tratamento dada a clientes brancos da loja e a Ana Paula Barroso, delegada vítima de racismo.

"Cabe ressaltar que essas imagens são retiradas do relatório técnico, em que constam mais de dez outros clientes sem máscara, alguns se alimentando, outros não, os quais não foram abordados nenhuma vez para advertência quanto ao uso correto do EPI naquele mesmo dia 14/09/2021", segundo a promotora.

INVESTIGAÇÃO

Bruno foi indiciado pela Polícia em outubro de 2021. Na época, o então delegado geral, Sérgio Pereira, revelou que testemunhas (entre ex e atuais funcionários da Zara) relataram, durante a investigação, que a marca tinha o código "Zara zerou". 

O código era disparado no alto-falante da loja quando entrava um cliente fora do padrão desejado pela loja, o que poderia colocar a segurança em risco. Conforme as investigações, eram alvos do alerta "Zara zerou" pessoas negras e julgadas como "mal vestidas".

Para o Ministério Público, ao se negar a atender ou receber a vítima, não houve outra razão fundamentada que não fossem as próprias características físicas dela. "Diante de todos os elementos juntados aos autos, nota-se a prática de crime resultante de discriminação ou preconceito de raça, cor ou etnia com latente diferenciação de tratamento entre clientes do estabelecimento comercial", disse o órgão acusatório, na denúncia.