Nos últimos cinco anos, aproximadamente, 150 mulheres foram vítimas de feminicídio no Ceará. Neste mesmo período, o Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE) julgou 1.278 processos tendo como assunto feminicídio (o que inclui também as tentativas de assassinato de mulheres em razão do gênero).
Os números do Tribunal crescem com o passar dos anos. O quantitativo de julgamentos de janeiro ao início de novembro deste ano de 2024 (353) já supera os registros de todo o ano passado (326).
Coordenador das Varas Criminais e juiz de uma das Varas do Júri de Fortaleza, o magistrado Edilberto Lima, fala dos esforços concentrados para dar uma resposta aos familiares das vítimas e das particularidades de processos que fazem com que o desfecho processual demore anos para acontecer.
“Ambos casos de feminicídio e tentativa de feminicídio são julgados pelo Tribunal do Júri. Isso não significa que pouco mais de 1.200 mulheres foram mortas, pouco mais de 1.200 agentes foram denunciados como autores de um crime doloso contra a vida de uma mulher em condição de violência doméstica, tendo ela morrido ou não por aquele ato”, esclarece o juiz.
A particularidade do assassinato de uma mulher em razão de gênero ser um crime no qual na maior parte das vezes imediatamente o autor está identificado auxilia no trâmite da investigação e, consequentemente, o processual: “nesses crimes que costumam acontecer dentro de casa, muitas vezes, os vizinhos viram, algum parente viu, e isso favorece no contexto do júri”, diz Edilberto.
O magistrado tem a percepção, a partir dos júris que preside, que a maior parte dos acusados de feminicídio são condenados. “Eventualmente você tem caso de desclassificação, ele vem acusado de homicídio de forma tentada e quando chega ao júri os jurados entendem que não, que foi uma lesão corporal”.
Enquanto há crimes de feminicídio que, entre o tempo do assassinato e condenação, duram poucos meses, como o caso da vítima Talita Lopes Falcão, no qual o acusado Jorge Luís Santos foi condenado após 185 dias desde a morte, outras ações penais se arrastam no judiciário, deixando famílias sem respostas.
“Em termos operacionais os processos podem apresentar algumas questões que, inevitavelmente, geram uma demanda maior, como quando há indicativo que o autor do fato padece de sofrimento mental. O Tribunal tem priorizado dar uma resposta nos casos de feminicídio. Quando a gente levanta os dados é assustador. É um número grande”, destaca o magistrado.
ACUSADO SOLTO E PROCESSO EM FASE DE INSTRUÇÃO
Em 2019 foram registrados 34 feminicídios no Ceará. Naquele ano, o Diário do Nordeste acompanhou caso a caso. Das ocorrências que resultaram em processos criminais, pelo menos 15 homens denunciados receberam sentenças de condenação.
No entanto, o andamento processual de um dos crimes chama a atenção. No fim do ano de 2019, Josilaene Pereira da Silva foi assassinada na cidade de Salitre. O acusado, José Antônio Batista Neto, fez uso de arma branca para cometer o homicídio contra a companheira, foi preso, denunciado pelo Ministério Público do Ceará (MPCE) em março de 2020 e dois anos depois solto por decisão da Justiça, sem mesmo ter terminado a fase de instrução processual.
Outro feminicídio ocorrido em 2019 e acompanhado pela reportagem é o que teve como vítima Maria Moreira de Andrade. Antônio Alberto Moreira da Silva, preso pelo crime, foi levado a julgamento em 30 de novembro de 2022. Conforme o TJCE, foi considerado o laudo pericial psiquiátrico que concluiu ser o réu inimputável ao tempo do fato por ser portador de transtornos mentais e comportamentais. “Desta forma, o Juízo da Vara Única Criminal de Itapajé julgou improcedente a pretensão punitiva e absolveu impropriamente o acusado, ou seja, reconheceu a prática do crime, no entanto, por ser o réu considerado inimputável, determinou a aplicação de medida de segurança, sendo ela internação psiquiátrica adequada para tratamento multidisciplinar”.
A reportagem teve acesso a documentos do caso. Nos autos consta que a defesa de José Antônio Batista deu entrada em diversos pedidos de revogação de prisão preventiva, até que, em abril de 2022, a 2ª Câmara Criminal substituiu a prisão por medidas cautelares e determinou que fosse expedido alvará de soltura.
O acusado foi mantido detido na Penitenciária Industrial Regional do Cariri (PIRC), em Juazeiro do Norte, e liberado no dia 9 de abril de 2022, mediante monitoramento eletrônico. Seis meses depois, teve a tornozeleira retirada com autorização judicial.
O processo original tramita na Vara Única da Comarca de Campos Sales. Foi designada uma audiência de instrução e julgamento para 13 de junho de 2024, mas não aconteceu. No mês seguinte foi anexado aos autos que demais expedientes não puderam acontecer “devido às férias do promotor titular e conflito de datas do promotor que ficou respondendo pela Comarca”.
Sobre o andamento deste caso, o TJCE disse que o processo segue em fase de instrução e com audiência marcada para 21 de novembro: “durante a sessão, serão realizadas as oitivas de duas testemunhas de acusação, três testemunhas de defesa, além do interrogatório do réu”, conforme o Tribunal.
‘REVOLTA SOCIAL’
Estar em fase de instrução é sinônimo de não haver ainda sentença de pronúncia ou impronúncia do réu, o que indica se o acusado vai ou não ao Júri Popular. A reportagem entrou em contato com familiares de Josilaene, mas não teve as mensagens respondidas e as ligações atendidas. A defesa de Antônio Alberto não foi localizada.
O juiz Edilberto Lima diz que o Judiciário compreende “que o feminicídio causa uma revolta, uma reprovação social muito grande. Isso acaba exigindo uma resposta das instituições, sobretudo na perspectiva do prazo, muito maior. Nossa expectativa é que haja julgamento o mais rápido possível”.
“Um dos propósitos de um julgamento mais rápido é que a resposta ainda venha contextualizada com o fato”, destaca Edilberto.