Há 10 anos, com o Projeto Periquito Cara-suja, da ONG Aquasis, os três primeiros filhotes nascidos em ninhos artificiais no Ceará voaram para escrever uma nova história na natureza. Estimava-se, à época, que a população desta ave, endêmica do Nordeste, fosse inferior a 100 indivíduos. Hoje, a Serra de Baturité abriga 80% dos mais de 800 periquitos. O salto, em dez anos, permitiu que o Cara-suja deixasse o status de “criticamente ameaçado” para “em perigo”, um passo importante na preservação da ave.
Atualmente, as únicas espécies de aves em perigo de extinção que estão em aumento populacional no País, são o Cara-suja e a Arara-azul-de-lear, na Bahia, conforme ressalta o biólogo Fábio Nunes, coordenador do Projeto da Aquasis. "As outras estão com tendência estável ou de declínio populacional", lamenta. As informações constam no relatório da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), autoridade global na questão ambiental.
Os resultados ajudam a criar estratégias para outras espécies ameaçadas no Ceará, avalia o biólogo. “Teve início em meados de 2006, com estudos sobre a biologia da espécie e sua distribuição. Descobrimos, inclusive, outras áreas de ocorrência dela”. Em 2010, passou-se a utilizar as caixas-ninho, equipamentos que simulam o ambiente natural para reprodução das aves. “O que a gente fez foi adaptar às características do Cara-suja, com largura, profundidade, quantidade de entradas adequados”, explica.
“O Brasil demorou muito para investir em recuperar e fazer manejo de espécies. A gente é tomado de burocracia e a Ciência ainda é muito puritana. A Ciência interventiva pode salvar espécies e trazer bons resultados. Às vezes, o bicho tá precisando de ajuda mesmo”.
A Aquasis desenvolve, ainda, outros projetos de preservação no Ceará, como do Soldadinho-do-Araripe e Projeto Manatí, que criou uma estrutura pioneira no País para auxiliar no retorno de peixes-bois ao mar. No fim de junho, a Aquasis concluiu a transferência de dois animais para a plataforma marinha, em Icapuí. A ONG se mantém com auxílio de apoiadores como Programa Petrobras Socioambiental, SESC Ceará, parceiro há quase 20 anos, e ENEL.
Caixas-ninho
Atualmente, um total de 111 caixas-ninho estão distribuídas no Ceará. O periquito está presente em três áreas do Estado, além da Serra de Baturité, principal refúgio da ave: Serra Azul, em Ibaretama; Serra do Parafuso, em Canindé; e Serra do Mel, em Quixadá. Indivíduos também foram encontrados na Bahia, com estudos ainda em análise. “A gente bolou a ideia de colocar os ninhos artificiais, colocamos onde as pessoas podem monitorá-los, inclusive à noite, e criamos um ambiente favorável para a espécie se reproduzir”, pontua Nunes.
Em 2019, 334 indivíduos nasceram e saíram dos ninhos, maior número desde o início da década. Resultados que animam e que são fruto, também, do empenho da comunidade na preservação. Pio Rodrigues Neto, 67, vive há 40 anos na serra e é prova disso. Em sua propriedade, no sítio Sucupira, em Guaramiranga, são mantidas nove caixas-ninho. “Em 2017, quando soube que a Aquasis estava fazendo esse trabalho, mandei 50 caixas. Só das nove que tenho no sítio, voaram 63 filhotes neste ano”, conta.
“Faz parte da minha história de vida. Vou mandar mais uma remessa de caixas e já consegui incentivar várias pessoas a fazer o mesmo”.
Cada caixa custa, em média, R$ 100, segundo a Aquasis, e precisa seguir um parâmetro para garantir a preservação ambiental, com madeira certificada por lei e sem o uso de tinta ou verniz. “Ecologicamente não traz nenhum dano”, explica Pio.
O Projeto espera, agora, poder repovoar regiões onde a ave já esteve presente. “O Cara-suja teve seu direito de existir negado em muitos espaços. A gente mandou bichos apreendidos para o Parque das Aves (Paraná) e esses filhotes podem voltar às áreas onde a espécie já existiu”, explica Nunes. As serras da Aratanha e da Ibiapaba têm potencial para um programa de reintrodução. “Já temos autorização para reprodução em cativeiro. Com o amadurecimento do Projeto, ainda nesta década, com certeza, isso vai acontecer”.
“A gente já contou mais de 15 bichos usando a caixa-ninho. Temos um roedor e uma ave ameaçados de extinção que também estão usando. Quem vai à Serra de Baturité, acha tudo lindo, muito verde. Mas, olhando com um olhar mais científico, observamos os problemas. Os animais que usam oco de árvore para sobreviver são os mais prejudicados”.
Serra de Baturité
Nunes ressalta que não é possível falar do Cara-suja sem citar a Serra de Baturité. “É onde tem a maior população e onde existe maior ambiente para essa espécie se perpetuar”, avalia.
Dos 822 periquitos soltos na natureza, segundo o último censo da Aquasis, no último ano, 657 (79,9%) estão nesta região. “A gente usa essa ave para preservação, também, desse ambiente”, ressalta. A importância fica evidente quando olhando os dados. O Maciço, que abrange 13 municípios cearenses, abriga 26 espécies ameaçadas de extinção no Ceará. São 12 aves; oito mamíferos; três plantas; dois répteis; e um anfíbio, segundo Nunes, com base em balanço do Ministério do Meio Ambiente.
“O trabalho desenvolvido em parceria com o Batalhão da Polícia do Meio Ambiente (BPMA) muito tem contribuído com as ações de proteção no Maciço de Baturité”, garante Patrícia Jacaúna, gestora da Área de Proteção Ambiental (APA) da Serra de Baturité. “Numa região em que há grandes atrativos turísticos e forte especulação imobiliária, tem sido um desafio garantir o objetivo fundamental da Unidade de Conservação, que é proteger dos grandes impactos. Tal trabalho tem sido possível, através de uma gestão reflexiva, transparente e democrática”, pontua a representante.
Um desses símbolos é o Refúgio da Vida Silvestre Periquito Cara-Suja, Área de Proteção Integral de 39,12 ha, em Guaramiranga.
“É um espaço importante, onde temos outras espécies de aves ameaçados de extinção. Foi criada em 2018 e, na época, não tinha nenhum periquito Cara-suja. Em 2019, já passaram a se reproduzir lá também e hoje já temos mais de 30 periquitos no local”, ressalta Nunes. “Recentemente, o Refúgio foi reconhecido pelo Comitê Nacional da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica como posto avançado, o que significa reconhecimento em níveis nacional e internacional”, acrescenta Jacaúna.
Conforme ela, o título gera “facilidades na aquisição de recursos e acesso a programas e projetos da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica (RBMA)", por exemplo.
Unidades de Conservação
Segundo a Secretaria do Meio Ambiente (Sema) do Ceará, o Estado possui 91 Unidades de Conservação (UC), sendo 38 particulares, 28 estaduais, 13 municipais e 12 federais - 70 são de uso sustentável e 21 de proteção integral. Neste cenário, as Áreas de Proteção Ambiental (APAs) são a categoria com maior concentração - 45,3%. “É uma das piores categorias porque é quase integralmente composta por propriedades privadas. As pessoas querem construir e isso gera uma especulação imobiliária”, avalia o biólogo Fábio Nunes.
“Uma solução muito boa se dá pelas Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPNs), que são mais restritivas que as APAs e protegem ambientes bem específicos”.
No Ceará, são 38 RPPNs, ao todo. “Temos estimulado a criação de RPPNs e ajudado os proprietários que têm criado. Um grande estímulo é que o proprietário não paga Imposto Territorial Rural. Em contrapartida, não podem haver atividades econômicas de alto impacto nestas áreas, como mineração ou atividade agropecuária”, ressalta o secretário do Meio Ambiente, Arthur Bruno.
O titular também destaca a importância de se criar um livro vermelho com espécies do Ceará ameaçadas de extinção. “Está na nossa meta criar o livro até o fim do mandato do governador Camilo Santana. Já fizemos, através da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap), uma parceria com o Labomar (Instituto de Ciências do Mar, da UFC), para que, a partir desse mapeamento, possamos estabelecer políticas de preservação e de punição aos infratores”.
Conheça as aves ameaçadas de extinção presentes na Serra de Baturité:
Aves ameaçadas de extinção na Serra de Baturité (MMA, 2014):
- Tucaninho (Selenidera gouldii baturitensis)*
- Chupa-dente-do-nordeste (Conopophaga cearae)
- Uru (Odontophorus capueira plumbeicollis)
- Saíra-militar (Tangara cyanocephala cearensis)
- Arapaçu-de-lafresnaye (Xiphorhynchus guttatoides gracilirostris)
- Choca-da-mata (Thamnophilus caerulescens cearensis)
- Vira-folha-cearense (Sclerurus cearensis)
- Maria-do-nordeste (Hemitriccus mirandae)
- Jacú-verdadeiro (Penelope jacucaca)
- Pintassilgo-do-nordeste (Spinus yarrelli)
- Arapaçu-rajado-do-nordeste (Xhiphorhynchus atlanticus)
- Periquito cara-suja (Pyrrhura griseipectus)
Além disso, a Serra possui registro de oito espécies de mamíferos ameaçados de extinção:
- Cachorro-vinagre (Speothos venaticus)
- Gato-pintado (Leopardus wiedii)
- Gato-do-mato (Leopardus tigrinus)
- Onça-parda (Puma concolor)
- Panthera onça (extinta localmente)
- Gato-maracajá (Puma yagouaroundi)
- Mocó (Kerodon rupestres)
- Rato-da-árvore (Rhipidomys cariri)
Três espécies da flora:
- Guzmania monostachia
- Guzmania sanguínea
- Adenophaedra cearensis*
As seguintes espécies só têm registro para a Serra de Baturité: Adenophaedra cearensis, Phyllanthus carmenluciae e Vriesea baturitensis. Além disso, diversas espécies no Ceará só têm registro para o Maciço de Baturité ou em poucos ambientes de refúgio do Estado, nos brejos de altitude.
Dois répteis:
- Cobra-da-terra-dos-brejos (Atractus ronnie)
- Lagarto-de-baturité (Leposoma baturitensis)
Um anfíbio:
- Adelophryne baturitensis
Além disso, o anfíbio Rhinella casconi e a subespécie de ave Selenidera gouldii baturitensis só existem na região.
(*) Só existe na Serra de Baturité