A professora Renata Rocha mora na cidade de Penaforte, no Ceará, mas leciona em Cedro, município do Pernambuco, onde as aulas presenciais já foram autorizadas a retornar desde o último dia 19 de abril. Nos três dias da semana em que ela precisa ir ao estado vizinho, a docente carrega o material de trabalho e o medo.
“Sinto medo no trajeto. Não sei quem sentou, quem estava naquela poltrona, não sei se estava infectada. Tenho medo, mas tenho que trabalhar”, relata. O temor pela contaminação é potencializado pelo risco de infectar seus pais, já idosos. “Moro com eles e sei que é complicado. Preciso ter cuidado redobrado para não me infectar, nem infectá-los”, completa.
Esse temor da professora tem uma razão. O ir e vir entre estados diferentes- que inclusive adotam protocolos e medidas sanitárias diversas - é um potencializador de risco. Para ela e sua família. Mas também para as pessoas que vivem nas cidades com intenso fluxo. O médico Vitor Timbó- que atua na ala covid do Hospital Santo Antônio (HSA) em Barblha - pontua que o tráfego em regiões de divisas interfere muito na curva de casos.
"Os estados que têm medidas mais brandas podem ocasionar aumento de casos de Covid e essas pessoas que trafegam entre uma cidade e outra podem disseminar o virus entre as cidades. O cuidado na manutenção de barreiras é importante para que os casos tendam a diminuir a curva", explica. Ele ainda reforça que é preciso manter os cuidados de maior rigidez, com higienização de veículos, utilização de máscara, manutenção de distanciamento social.
Maior exposição, maior risco
Apesar da escola onde Renata trabalha “seguir todos os protocolos”, conforme avalia, ela considera que “quanto maior a exposição, maior o risco de contrair a doença”. Na volta à casa, em coletivos que fazem diariamente a linha Ceará-Pernambuco, ela resume o sentimento: “Dá um frio na barriga”.
A assistente de gestão, Angela Oliveira, é outra que corta a fronteira cearense para exercer sua atividade. Ela mora em Jardim (CE) e também trabalha em uma escola na cidade de Cedro (PE). O sentimento é mesmo descrito por Renata. “Temos receio, mas a gente procura de todas as formas ter certos cuidados para não se contaminar”.
Cuidados esses que, na concepção de Angela, são mais brandos na cidade pernambucana. “Nas ruas vemos muitas pessoas sem máscara, sem fazer o uso do álcool em gel, enfim percebemos que aqui [em Cedro], não tem tantos cuidados”, descreve. Cedro tem 1.319 infectados e 16 óbitos. O Município tem cerca de 12 mil habitantes.
Nas escolas, contudo, os cuidados, na avaliação das pedagogas, são positivos. Gecilda Conrado, moradora da cidade de Jardim (CE), conta que as aulas na cidade de Cedro (PE) foram liberadas no formato híbrido. São doze crianças por sala e as refeições são realizadas em horários distintos entre as classes.
“Todos os nossos alunos mantêm o uso regular da máscara. Há distanciamento social respeitado e tapetes sanitizantes e, na hora do intervalo, só fica um aluno por mesa. O retorno tem sido positivo”, avalia a cearense. Para ela, esse modelo aplicado em Pernambuco poderia ser replicado no Ceará. “Espero que o modelo seja usado no Ceará, tem dado tudo certo”, pontua a pedagoga.
Pernambucanos compartilham do mesmo medo
O receio de se contaminar não é exclusivo daqueles que moram no Ceará e trabalham em Pernambuco. Aos que residem do Estado vizinho, o temor é o mesmo. "A gente sente sim, o receio a mais. É muita gente vindo para cá. É muito perigoso”, pontua o autônomo José Maria Neto.
O comerciante José Alves, morador de Cedro (PE), ressalta que, para conter a transmissão do vírus, “moradores e visitantes têm que respeitar as medidas sanitárias”. Na sua avaliação, o maior desafio é “convencer os jovens a usarem máscaras e se cuidarem”. Ele aponta que uma parcela das pessoas desta faixa etária “não estão respeitando as medidas”.
A secretária da Saúde de Cedro, Júlia Alves, reconhece que, mesmo diante de um agravamento nacional da pandemia, “as pessoas ainda são muito resistentes ao uso de máscara e outras medidas, como lockdown”. A gestora considera que este tem sido o principal gargalo para conter o avanço do vírus em sua cidade pernambucana.
A falta de engajamento por parte da população e o aumento do fluxo flutuante – pessoas que moram em outras cidades, mas trabalham ou fazem compras em Cedro – são apontados, pela secretária, como os responsáveis pelo aumento de casos na cidade.
“Por sermos divisa com o Ceará, as ações ficam mais complicadas. Por cerca de um mês adotamos barreiras sanitárias e também houve lockdown, mas sentimentos que não tem sido suficiente”
“Tem crescido muito os números de casos”
A secretária afirma que nas últimas semanas houve um “grande” aumento no número de casos no Município pernambucano. “O alto fluxo de pessoas é um dos principais fatores”, reforça. As projeções futuras, ainda segundo Júlia Alves, são preocupantes.
Acredito que ainda vem muito mais [casos].
Diante desta constatação, o Comitê que versa sobre as ações de combate à pandemia será reestruturado e os protocolos rediscutidos. “Apesar de fiscalizar, ainda há falta de conscientização, as pessoas seguem aglomerando e continuam fazendo festas clandestinas”, externa a preocupação.
Na cidade de Exu (PE), que também faz fronteira com o Sul do Estado, a intensa movimentação de pessoas é apontada como um fator preocupante. O coordenador de Vigilância Sanitária de Exu (PE), Diego Celso Bezerra de Sá, lembra que, devido a Exu ser economicamente muito ligada ao Cariri cearense, “o fluxo diário é muito grande”.
Mesmo diante deste cenário, Celso Bezerra diz que o Município não possui artifícios de conter esse vaivém.
“Quando o decreto estadual aqui estava em vigor, a gente fez barreiras sanitárias no intuito de reduzir e controlar esse fluxo, mas agora não está mais em vigência e o município de Exu não tem como barrar pessoas de outras cidades. Nos cabe investir na conscientização”
O reflexo desta interação entre cidades dos dois estados é notado, segundo o coordenador, nos casos que ainda estão em alta, sobretudo naqueles que fazem esse percurso diário. “Temos aqui muitos comerciantes infectados”, complementa Diego Celso Bezerra.
A cidade de Exu, que tem cerca de 32 mil habitantes, já conta com 2.728 infectados e 33 mortes por decorrência do vírus. Uma dessas morte foi do tio do agricultor Clodomir Moreira da Silva. Ele perdeu o parente nesta semana e revela que tem “outros parentes intubados”.
"As autoridades pedem todo dia, mas nem todos colaboraram. A cidade é repleta de gente direto. Vem gente de várias cidades e, por isso, o negócio está tão complicado”, relata. Com casos dentro da família, Clodomir se mostra “assustado” e afirma se precaver para conseguir chegar a idade dos pais. “Meu pai morreu com 100 anos, minha mãe é viva, tem 100 anos e dois meses”. Clodomir, hoje com 58 anos, ainda não recebeu o imunizante contra a doença.
“Trabalho porque não sou aposentado. Tenho que ter meu sustento. Mas vivo com medo. É uma doença terrível”, finaliza.
“Se não houver uma mudança de postura, não teremos leitos”
A secretária da Saúde de Exu, Fátima Saraiva, revela que não somente seu Município, mas como todo o Estado, "passa por um dos piores momentos da pandemia". Ela também credita ao grande fluxo de pessoas o aumento substancial de casos. Segundo o Ministério da Saúde, Pernambuco tem 418 mil infectados e 14.395 óbitos. O Ceará tem 706.540 casos confirmados e 18.429 óbitos decorrente do novo coronavírus.
Diante do grave cenário, Fátima revela que "todas as ações" tem sido intensificadas, como fiscalização no comércio, trabalho de conscientização, dilatação nos horários de atendimento das unidades de saúde e expansão dos leitos Covid de 9 para 15 vagas. No entanto, mesmo apesar da ampliação, "o sistema de saúde está colapsando", revela Saraiva.
"Quando há expansão, é porque há maior demanda. Se não houver uma mudança de postura, logo não teremos leitos suficientes", alerta a secretária.
A gente sabe que o vírus é um inimigo invisível e, sem a colaboração de todos, não vamos conseguir vencer. Aproveito para pedir àqueles que precisam vir à nossa cidade que se cuidem e adotem todos cuidados. A situação realmente é delicada.
O Diário do Nordeste entrou em contato com os municípios cearenses de Penaforte e Jardim, mas não teve retorno para falar das ações que as cidades fazem em relação ao alto fluxo de pessoas circulando entre as divisas.