Irmãs de Benigna Cardoso contam lembranças da primeira beata cearense: 'destruiu nossa infância'

Há 80 anos, a jovem foi brutalmente assassinada após reagir a uma tentativa de violência sexual

Sob a luz do luar, as pequenas Benigna, Tereza, Iranir e Tetê se reuniam para brincar de roda na casa de sua avó, no sítio São Gonçalo. “Carneirinho, carneirão, neirão, neirão, olhai pro céu, olhai pro céu, pro céu, pro céu. Para ver nosso senhor, senhor, senhor, para todos se ajoelhar”, cantavam as quatro para, em seguida, ficarem de joelhos. O mesmo verso se repetia, exceto ao fim: “para todos se levantar”, mandava a canção. Todas obedeciam. 

Com seus vestidos sujos do barro do terreiro, a brincadeira seguia à noite toda e só era interrompida para que as quatro lavassem os pés e as mãos, antes de comer, para dormir. O encontro entre elas acontecia todo final de semana, já que as famílias moravam em sítios distintos, mas todas foram criadas juntas pela avó. No interior, no termo mais popular, “irmãs de criação”. 

Certo dia, as quatro repetiam “Carneirinho” quando, após o último verso, Benigna, a mais velha do grupo, com 13 anos, ficou paralisada olhando atentamente para o céu. Tetê, de apenas quatro, procurava com atenção o que sua irmã avistava. “Vamos, Benigna, agora a gente vai cantar ‘Lá vem a lua’”, pedia a caçula. 

O pedido não adiantou. Benigna deixou a brincadeira, que era sua preferida, sem dar muitas explicações e ficou sentada na calçada, calada e pensativa. “O semblante dela era triste”, lembra com precisão Terezinha de Alencar Nuvens, a Tetê, hoje com 83 anos. 

A família de Benigna Cardoso da Silva já sabia que um rapaz, que ainda não tinha sido identificado, estava perseguindo-a. Ao voltar da escola, a jovem confessou ao padre Cristiano Coelho que um outro garoto queria namorar com ela e mandava cartas com frequência.

O sacerdote, imediatamente, contou para sua família, que a retirou da escola que ficava no antigo sítio de Inhumas, mais próxima de onde morava, colocando-a na sede de Santana do Cariri. Seu irmão Cirineu passou a esperar sua saída do colégio para acompanhá-la até em casa, por segurança. 

“Nós fomos criadas da escola para casa, e de casa para a igreja. Nossa amizade era dentro de casa, entre nossa família”, recorda Iranir Oliveira, hoje com 86 anos.

Com a religiosidade muito forte na sua família, Benigna chegava até a fazer companhia à avó, na sexta-feira, para rezar. Além disso, segundo a irmã, era uma menina muito organizada. Em cada caixote, separava seus vestidos de acordo com a ocasião: brincar, estudar ou ir à missa. 

Também demonstrava muita sensibilidade. Certo dia, junto com as irmãs, foram brincar na casa de farinha da propriedade do seu bisavô. Ao chegar nela, começou a chorar por ver o boi sofrendo ao conduzir o maquinário — na época, o equipamento mais comum funcionava com tração animal. “Meu pai pediu para não levar mais ela para lá e prometeu soltar o boi”, narra Iranir. 

Ainda aos 12 anos, Benigna despertou um grande desejo de cultivar plantas medicinais e flores. Com autorização da sua família, buscava água na cacimba, diariamente, para regá-las. A fonte ficava a poucos metros de casa e ela costumava ir sozinha. 

Foi buscando água para cuidar de suas plantas que, no fim da tarde do dia 24 de outubro de 1941, Benigna foi atacada por Raimundo Alves Ribeiro, o “Raul”, de 17 anos, que a perseguia há mais de um ano, enquanto ela estudava em Inhumas. Escondido na vegetação, o jovem a surpreendeu e tentou agarrá-la. Como ela resistiu, ele desferiu golpes com um facão, ferindo suas mãos, a cabeça, os rins e, fatalmente, o pescoço. 

“Ele acabou com nossa infância. Nós nunca mais brincamos. Em noite de lua, não gosto nem de olhar pro céu”, desabafa Iranir ao lembrar da morte da irmã. Nem ela, nem Tetê puderam vê-la pelo estado de mutilação em que o corpo foi encontrado. Mesmo alvo de devoção, o local onde Benigna foi morta nunca foi visitado pelas duas pela dor que ainda mantêm. 

Na época do crime, outros moradores foram presos, suspeitos de matar Benigna, inclusive seu irmão Cirineu, que encontrou seu corpo. Raul só foi capturado dias depois pela Polícia e encaminhado para um abrigo de menores em Fortaleza.

Segundo Iranir, após cumprir a pena, ele voltou à Santana do Cariri e se mostrou arrependido, tentando construir um pequeno monumento no local do crime. A família da jovem não permitiu e pediu que ele se retirasse da cidade. Raul deixou Santana do Cariri e mudou-se para São Paulo. Depois disso, nunca mais foi visto. 

Santidade

O assassinato da jovem causou grande comoção em Santana do Cariri pela crueldade em que seu corpo foi encontrado. Logo, o local onde foi morta chegou a ser alvo de peregrinação e devoção. O próprio padre Cristiano Coelho, que antes do crime havia entregue uma Bíblia a Benigna, incentivou a fé em torno dela. Dele, reverberou-se como “Heroína da Castidade”. 

Como seu mártir, em 2011, a Diocese de Crato abriu o processo de beatificação de Benigna, que foi aceito, dois anos depois, pelo Vaticano. Após ser aprovado, ela foi aclamada “Serva de Deus” pela Igreja e, após apresentar as virtudes necessárias, proclamada como “venerável”. 

Na fase inicial, os teólogos investigaram as virtudes e as circunstâncias da morte. A comprovação de um milagre, critério necessário para tornar-se beato, é dispensado em caso de martírio. No caso da menina, a população acredita que “ela deu a vida para não cometer pecado”. 

Além da extensa documentação que a equipe diocesana apresentou na sede da Igreja Católica, o Vaticano solicitou, em 2016, depoimentos de pessoas que viveram entre as décadas de 1940 a 1980, relatando graças alcançadas e sobre a consciência popular do martírio de Benigna.

Com a aprovação da Comissão dos Teólogos, a fase mais longa do processo, restou aos bispos discutirem a aprovação da beatificação da menina para, em seguida, encaminhar para o Papa Francisco.

Após a aprovação do pontífice, a beatificação — primeiro passo para a canonização, onde a Igreja reconhece oficialmente a fama e o testemunho de santidade de alguém que viveu e morreu heroicamente, marcado pelas virtudes cristãs — aconteceria no dia 21 de outubro do ano passado, mas foi adiada por causa da pandemia da Covid-19 e ainda não tem data definida. 

A notícia de sua beatificação, que tornará Benigna a primeira cearense com este reconhecimento da Igreja, causou emoção em sua família, 80 anos após a sua morte: “A gente se sente realizado, porque foi uma criança que brincou com a gente, conviveu”, conta Iranir.

Apesar de ter tido o contato mais “humano” com a jovem, ela acredita na sua santidade. “Eu acho que ela é uma menina com a graça de Deus, pela criança que ela era, boa, religiosa. Não tenho dúvida”, garante.

Inclusive, quando seu filho foi diagnosticado com um câncer na medula, a aflição de Iranir foi transformada em preces para sua irmã. “Eu fui de Benigna à Nossa Senhora Aparecida. Não ficou um santo”, brinca. O sucesso na operação para a retirada do tumor reforçou a fé: “Eu não duvido e quando me vejo em inquietação, me apego a ela”, completa a irmã.