Em situação precária, único centro de reabilitação de animais silvestres no Ceará não atende demanda

Há pelo menos dois anos, voluntários precisam atuar no resgate e reabilitação de animais silvestres

Na segunda-feira (14), uma ninhada de nove patinhos da espécie marreca viuvinha foi encontrada por um morador na beira da CE-025, no Porto das Dunas, em Aquiraz. Sob o risco de atropelamento ou ataque de animais domésticos como gatos ou cachorros, eles foram conduzidos por populares ao Batalhão de Polícia de Meio Ambiente (BPMA).

O destino foi um criatório particular em Guaramiranga, a mais de 130 quilômetros de onde foram localizados. Esta situação se tornou bem comum, nos últimos anos, com a superlotação e precarização do Centro de Triagem e Reabilitação de Animais Silvestres (Cetas) em Fortaleza, equipamento responsável pelo manejo dos animais silvestres que são recebidos de ação fiscalizatória, resgate ou entrega voluntária de particulares

O Cetas possui a finalidade de receber, identificar, marcar, triar, avaliar, recuperar, reabilitar e destinar esses animais silvestres, com o objetivo maior de devolvê-los à natureza, além de realizar e subsidiar pesquisas científicas, ensino e extensão.

No Ceará, a única unidade, implantada em 2008 pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), há pelo menos dois anos não consegue atender a grande demanda e este tipo de trabalho acaba dependendo da ação de voluntários.

Médico veterinário, Marcel Lucena ressalta a importância destes equipamentos, principalmente, num estado que possui muitas áreas remanescentes de floresta e mangue próximas aos centros urbanos, como Fortaleza.

O avanço da cidade, inclusive, é o que oferece o maior risco a animais silvestres, já que são comuns os casos de atropelamento e ataque de animais domésticos. “Infelizmente, há mais ou menos uns cinco anos, o Cetas não funciona de forma adequada. Há dois anos, praticamente não funciona nada”, denuncia.

Diariamente, Lucena recebe inúmeras ligações sobre animais selvagens encontrados ou que precisam de apoio. Antes de se mudar para São Paulo, tratava os bichos por conta própria, já que o Cetas não possui condições de recebê-los.

Eu mesmo reabilitava e fiz as solturas. Porém, fazendo isso, estou fora da lei. Muitos voluntários, como biólogos e veterinários acabam ajudando. Simpatizantes levam em clínicas particulares"
Marcel Lucena
Médico veterinário

Segundo Lucena, a Constituição estabelçece que essas ações são ilegais. "Corre risco de sofrer multa, mas é tudo em prol dos animais, que geralmente morrem sem apoio”, explica.

Outro problema do não funcionamento do Cetas é a soltura inadequada destes animais. “Se eu jogar um animal doente em uma fauna saudável, pode acarretar doenças a eles. Se ele está acostumado a viver em cativeiro e não reabilitar, acostumar ao ambiente de soltura, não saberá viver sozinho e vai morrer. Não conseguirá se alimentar. Sofrerá muito mais que se tivesse sob cuidados humanos”, esclarece o veterinário.

Interior

No interior, a situação também se torna grave pela prática comum de caça, venda e criação de animais silvestres em cativeiro. “Se der uma volta no interior, como costumamos trabalhar com comunidades, muitas pessoas caçam, sejam pela subsistência ou lazer. Os casos de subsistência ainda são mais isolados e impactam até menos”, pondera o coordenador técnico da Associação Caatinga (AC), o biólogo Samuel Portela.

A maioria de animais apreendidos no Interior é composta de pássaros que ainda são vendidos ou criados em cativeiros, segundo o biólogo. Mamíferos, geralmente, são abatidos por alimento. Com a ausência do Cetas, Portela denuncia que, muitas vezes, as aves estão sendo soltas em áreas onde não são naturais, podendo causar um transtorno naquele ambiente. “São condenadas à morte”, setencia. Mesmo em áreas onde habitam as mesmas espécies, os bichos acabam competindo por territórios, causando desequilíbrio naquele lugar.

A Associação contabiliza mais de 180 doenças podem ser transmitidas para o homem pelo contato direto ou indireto com animais silvestres, como raiva (que pode ser transmitida por macacos ou raposas); leishmaniose (difundida por roedores) ou toxoplasmose (uma infecção que pode ser adquirida através de alimentos contaminados ou mal passados)

O biólogo da Associação de Pesquisa e Preservação de Ecossistemas Aquáticos (Aquasis), Fábio Nunes, acredita que o ideal é descentralizar o serviço, criando Cetas em outras regiões do Ceará. A responsabilidade, neste caso, não seria apenas do Ibama, mas também da Superintendência Estadual de Meio Ambiente (Semace). “Mesmo que a unidade de Fortaleza funcionasse, não comportaria. Acaba que um fica jogando a responsabilidade para o outro e a Semace dizendo que não tem estrutura”.

Precarização

O tenente José Pereira da Silva Filho, comandante do BPMA em Juazeiro do Norte, responsável por atuar em 72 municípios do interior do Estado, conta que os próprios policiais realizam a soltura dos animais apreendidos. Se ele não apresenta boas condições, é levado ao Cetas de Recife, no Pernambuco, a cerca de 600 quilômetros do batalhão. O contato é feito com intermediação do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).

Os saudáveis acabam ficando no próprio quartel. “Não é o ideal, mas é o que conseguimos”, admite o comandante. Quando precisam de um cuidado maior, como filhotes de felinos ou aves com asas quebradas, por exemplo, recebe apoio de voluntários como biólogos e veterinários, conta o tenente Filho.

MPCE vai à Justiça pedir um Cetas estadual

Dada a situação do Cetas, o Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE) realizou, em novembro do ano passado, uma visita ao centro. A vistoria averiguou a precaridade e identificou a superlotação agravada pela ocorrência do vírus “circovírus”, doença que afeta as aves, impossibilitando que sejam devolvidas à natureza enquanto não estiverem curadas.

Mesmo em condições estruturais adequadas, o equipamento seria insuficiente para atender à demanda, na avaliação do órgão. Por isso, dias antes, uma Ação Civil Pública (ACP) foi ajuizada com a Semace com objetivo de criar um Cetas de esfera estadual.

A promotora Ann Celly Sampaio, secretária-executiva das Promotorias de Justiça do Meio Ambiente e Planejamento Urbano, ressalta que durante a vistoria percebeu-se que os animais são bem cuidados no Cetas. No entanto, o que impacta é sua capacidade.

Não tem estrutura, não tem onde colocar e não tem perspectiva de ampliação. Diante da pandemia, o cenário é ainda mais difícil de recursos serem destinados a isso”
Ann Celly Sampaio
Secretária-executiva das Promotorias de Justiça do Meio Ambiente e Planejamento Urbano

Como o Ibama se trata de órgão federal e a responsabilidade sobre o tema recai também às esferas municipal e estadual, o MPCE ingressou com a ACP contra a Semace, após tentar um acordo. A princípio, a autarquia seria responsável por montar uma estrutura de acolhimento vizinho ao zoológico Sargento Prata, em Fortaleza, que poderia receber, pelo menos, as aves.

"Já teria esse paliativo”, sustenta a promotora. Porém, nada avançou. Após ingressar na Justiça, o processo ainda aguarda a data da primeira audiência. “É lamentável que o Governo do Estado não olhe esse problema. Se não fossem as instituições, eu não sei o que seria”, desabafa a promotora de Justiça.

Procurada, a Semace informou, em nota, que se ofereceu para custear o Cetas integralmente, mediante cessão, e que aguarda uma definição, há dois anos, pelo Ibama. Ressaltou, ainda, que há mais de seis meses também espera uma resposta do órgão federal em relação a proposta de uma gestão compartilhada, de modo que viabilize a reabertura imediata do equipamento.

“A Superintendência ficaria responsável em custear atividades de veterinários, vigilantes, alimentação, dentre outros”, disse.

A Superintendência do Ibama no Ceará informou que o Cetas está em funcionamento.  Em relação ao acordo de cooperação técnica com a Semace, disse que se encontra em tramitação interna em fase final de análise do órgão. Porém, não deu mais detalhes.

A Semace também informou que a construção de um Centro de Tratamento e Reabilitação de Animais Silvestres na região do Cariri está em fase final do seu processo de licitação, “aguardando apenas a aprovação do último ‘produto’, que se refere à aprovação de entidades como Enel (viabilidade e instalação elétrica), Corpo de Bombeiros (parte de incêndios), dentre outros envolvidos. Posterior a esse processo, será aberta a licitação para construir o equipamento”, antecipou.

Sobre o destino dos animais, a própria Semace admitiu que, mediante resgate, apreensão ou entrega espontânea de animais silvestres, tem entrado em contato com empreendimentos de fauna, como por exemplo, zoológicos, para averiguar a disponibilidade de acolher o animal e instituições parceiras.

Outra opção tem sido procurar Cetas de Recife (PE) e Natal (RN) ou iniciativas parceiras, como o Projeto Cetáceos da Costa Branca da Universidade Estadual do Rio Grande do Norte. Por fim, ainda encaminha os animais aos cuidados de um terceiro, fiel depositário, “desde que o mesmo comprove condições de manter o animal em segurança”, reforçou.

Queda de apreensões

De acordo com a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS), em 2020, a Polícia Militar, através do BPMA, registrou 1.008 ocorrências referentes a crimes ambientais contra a fauna no Ceará. Destes, 159 se transformaram em inquéritos policiais, 326 termos circunstanciados de ocorrência (TCO) e 285 boletins de ocorrência lavrados nas delegacias de Polícia Civil do Estado do Ceará (PCCE).

2.537
Ao todo, foram apreendidos 2.537 animais e outros 474 resgatados de cativeiros, somando-se 3.011. Apesar de parecer alto, este número é 41% menor que o número de animais apreendidos e resgatados no ano anterior: 5.118

O tenente Filho acredita que, nos anos anteriores, foi dada muita ênfase à fiscalização, principalmente em feiras livres no interior do Ceará. Isso acabou diminuindo o número de apreensões. “Não é por falta de fiscalização”, reforça.

Por outro lado, ambientalistas acreditam que a falta de um local adequado para receber os animais acaba reduzindo o número de operações. “Não tem onde colocar e os caçadores sabem disso. As operações de combate à caça poderiam reduzir, e muito, a criminalidade, porque têm as multas, que pesam no bolso”, diverge Portela.

Hoje, a maior parte das ações da BPMA no Interior ocorrem a partir de denúncias. Como sua área de atuação é muito grande para realizar rondas, o apoio da população se torna decisivo
Tenente José Pereira da Silva Filho
Comandante do BPMA em Juazeiro do Norte

Para chegar ao local, temos muitas dificuldades. Às vezes, os caçadores deixam armas e munições dentro da própria mata, dificultando a identificação”, conta o agente de segurança. 

A população pode contribuir com as investigações repassando informações que auxiliem os trabalhos policiais. As denúncias podem ser feitas para o número 181, o Disque-Denúncia da SSPDS, ou para o (85) 3101-0181, que é o número de WhatsApp, pelo qual podem ser feitas denúncias via mensagem, áudio, vídeo e fotografia. As informações também podem ser direcionadas para o ‪‪(85) 3247-2630, da DPMA. O Esatdo afirma garantir o sigilo e o anonimato.