Pesquisa revela papel de outras beatas, reunidas em torno de Apostolado fundado por Padre Cícero
Fortaleza. Um padre, uma beata e uma hóstia transmutada em sangue. Tanto na "história oficial" como nas narrativas populares, estes são os protagonistas do fenômeno que transformou uma pequena comunidade em um espaço sagrado e alçou o padre local à categoria de santo, mesmo à margem da Igreja Católica. Mas ao se debruçar no processo episcopal que investigou o chamado "milagre de Juazeiro", encontram-se não apenas os relatos de Maria de Araújo, como também a descrição de "fenômenos extraordinários" experimentados por outras beatas que faziam parte do Apostolado do Sagrado Coração, fundado pelo Padre Cícero um ano antes do episódio da hóstia.
As experiências místicas dessas mulheres e a construção, a partir de seus relatos, de Juazeiro como um lugar sagrado são o tema da dissertação da historiadora Edianne dos Santos Nobre, mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Intitulado "O Teatro de Deus: a construção do espaço sagrado de Juazeiro a partir de narrativas femininas (Ceará, 1889-1898)", o trabalho ressalta a participação dessas mulheres no meio social e religioso, bem como o silêncio imposto pela Diocese do Crato ao darem testemunho de suas vivências místicas.
Sagrado feminino
Ao cruzar informações do processo episcopal que investigou o suposto milagre da hóstia e da correspondência dos vários personagens envolvidos no caso, Edianne Nobre percebeu um envolvimento maior e bem mais relevante de outras beatas do que até então se conhecia. Em seus depoimentos, as mulheres descreviam viagens ao Purgatório, Céu e Inferno, aparecimento de hóstias ensanguentadas, estigmas de crucificação em seus corpos, sangramento de crucifixos de metal maciço, relatos de visões, profecias, êxtases e comunhões espirituais.
Juazeirense, foi durante a pesquisa que a historiadora se deparou com relatos até então ausentes do que se sabia sobre o milagre. "Na memória local e na historiografia não havia lugar para as beatas, a não ser para considerá-las fanáticas e histéricas, isto quando apareciam de alguma forma. A beata Maria de Araújo era praticamente a única no cenário e mesmo assim apresentada, ora como coadjuvante do evento, ora como embusteira. Parti do pressuposto de que os milagres que foram narrados no processo episcopal pelas beatas são os eventos fundadores de um dos maiores espaços devocionais do Brasil".
Novas personagens
Na investigação, a historiadora localizou o nome de oito beatas que assumiram ter experiências místicas: Ângela Merícia do Nascimento, Antonia Maria da Conceição, Anna Leopoldina Aguiar de Melo, Jahel Wanderley Cabral, Maria das Dores da Conceição de Jesus, Maria Joanna de Jesus, Maria Leopoldina Ferreira da Soledade e Rachel Sisnando de Lima.
Muitas dessas mulheres viviam em casas de caridade, criadas pelo Padre Ibiapina para abrigar órfãs, viúvas e outras mulheres que não tivessem o amparo masculino. "No final do século XIX, os espaços de atuação social eram bastante limitados para as mulheres. Minha hipótese é que elas se reuniam em torno do Apostolado do Sagrado Coração, criado em 1888 e que congregava mulheres leigas no povoado de Juazeiro do Norte", aponta.
A historiadora explica que, naquele período, havia um esforço da Igreja Católica em promover a romanização dos espaços religiosos, afastando os fiéis de práticas devocionais populares. Instituições como o Apostolado do Sagrado Coração faziam parte das práticas de controle da atividade pastoral. Mas apesar de sua formação romanizada, Padre Cícero defenderá a ocorrência do fenômeno místico, pagando um alto preço.
Ironicamente, a primeira manifestação mística ocorreu após uma vigília do Apostolado do Sagrado Coração, realizada na Igreja de Nossa Senhora das Dores na madrugada da primeira Sexta-Feira da Quaresma de 1889. Foi quando, após receber a comunhão do Padre Cícero, a beata Maria de Araújo foi tomada por uma "veemente dor, unida ao mesmo tempo a uma grande consolação da alma". "O interessante é que a hóstia se transformava em sangue mesmo quando o Padre Cícero não ministrava a comunhão, e isso se repetiu por dois anos". Já em 1889, iniciam-se as primeiras romarias à Juazeiro, porém "o objeto de culto não era o Padre Cícero ou as beatas, e sim o sangue precioso".
Devoção
"Inicialmente, o objeto de culto não era o Padre Cícero ou as beatas, e sim o sangue precioso"
Edianne dos Santos Nobre, Historiadora
REPRESSÃO
Almas unitivas, mulheres silenciadas
Fortaleza. O processo episcopal, instaurado pela Diocese do Crato, foi dividido em dois inquéritos. No primeiro, os investigadores se convencem que as beatas eram almas unitivas, ou seja, pessoas que poderiam manifestar milagres por sua pureza e devoção. No entanto, este primeiro inquérito foi rejeitado pelo então bispo do Crato, dom Joaquim José Vieira, que decide formar uma segunda comissão de inquérito.
"O que se percebe é que há uma determinação da Diocese do Crato em provar que os milagres eram um embuste, imbuída pela orientação da Santa Sé de suprimir a prática do catolicismo luso-brasileiro", coloca Edianne Nobre. De acordo com a historiadora, o perfil das beatas era bem variado, mas a maioria era de origem humilde. Dos nomes localizados durante a pesquisa, a mais nova tinha 15 anos e a mais velha, 50 anos. No grupo, apenas duas sabiam ler, e uma delas chegou a escrever um memorial descrevendo as visões e revelações que teve.
Apesar do caráter simples e do respeito à autoridade dos padres, houve momentos em que as beatas tomaram atitudes de transgressão para defender o que testemunharam. "Quando um dos padres da comissão de inquérito ministrou a hóstia para Maria de Araújo e não houve o sangramento, ele logo colocou que estava ali a prova de que era uma fraude. Ao que a beata retrucou que a hóstia não sangrou por ele estar em pecado, porque já pressupunha que aquilo era condenável". A Diocese do Crato logo tomou medidas severas para sufocar as alegações de que houve um milagre em Juazeiro. A ordem era para que as beatas silenciassem sobre tais fenômenos e ficassem recolhidas sob pena de excomunhão, sendo também proibidas de receber visitas. Além do Padre Cícero, outros 40 sacerdotes que acreditavam no milagre foram destituídos de suas ordens. "Só que estes pediram perdão a Dom Joaquim e foram reabilitados. Padre Cícero foi o único que nunca se retratou. Numa das cartas ao bispo do Crato, ele afirma ser obediente à Igreja, mas que não poderia trair a fé dele". Pessoas que declarassem acreditar nos milagres não podiam se confessar ou casar. "Muitos casais iam casar em cidades vizinhas para não terem que negar sua crença", reforça Edianne.
Como a menção ao sangue precioso foi proibida, opera-se uma ressignificação dos milagres que leva à organização de Juazeiro do Norte como cidade, no início do século XX. "Para justificar a devoção e impedir medidas extremadas da Diocese contra as romarias que chegavam a Juazeiro, Padre Cícero justifica o movimento como uma devoção não mais ao sangue precioso, mas à Mãe das Dores, padroeira do povoado. Destituído de ordens, Padre Cícero entra no campo da política e da organização urbana, articulando a transformação de Juazeiro do Norte em cidade, cuja independência do Crato será obtida em 1911".
Karoline Viana
Repórter