Nos últimos anos, uma série de políticas entraram no raio de preocupação do Poder Público a partir de um novo olhar: o da atenção à primeira infância. A classificação engloba ações e medidas múltiplas — boa parte delas com rubricas e percentuais de investimento obrigatórios, definidos nos orçamentos por lei.
Tais iniciativas das gestões se dão em setores distintos e já conhecidos da máquina pública, como a educação, a assistência social, a cultura, a nutrição, o meio ambiente, a saúde e até mesmo a segurança pública. A nova compreensão trabalha, justamente, integrando essas diferentes pontas. E, com esse entendimento, os olhares dos órgãos de controle também passaram a mirar o assunto.
“De zero a seis anos, aquilo que acontece nesse período repercute para a vida toda”, disse o conselheiro Rholden Botelho de Queiroz, presidente Tribunal de Contas do Estado do Ceará (TCE-CE), instância cuja atenção tem se voltado para a temática da primeira infância ao longo dos últimos meses, durante uma breve entrevista que concedeu ao Diário do Nordeste.
A fala do representante da Corte de Contas ocorreu no dia em que o balanço das ações tocadas pelo órgão em 2024 foi apresentado à imprensa, na quinta-feira (12), durante um café da manhã. Ela surge de uma “vontade política” de Queiroz em mover esforços para monitorar a questão entre as gestões públicas cearenses, mas também uma pactuação de outros Tribunais em todo o país.
“Existe um movimento nacional de todos os Tribunais de Contas em acompanhar, com atenção, as políticas públicas voltadas para essa fase, que a gente sabe que é essencial para a vida do ser humano”, explicou o conselheiro, argumentando sobre como é preponderante investimentos do Poder Público nesse aspecto.
A ciência, pelo que alegou o conselheiro, tem sido a maior aliada. Para isso, foi montado uma equipe multidisciplinar, em parceria com a Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap), para estudar o assunto, compreendendo lacunas e desafios estruturantes. Segundo ele, no rol de pesquisadores estão profissionais da área de ciência de dados, pedagogia e da medicina.
Eleito para o comando do Tribunal em novembro de 2023, Rholden contou ter encontrado ainda nos primeiros meses informações que davam conta de um dado animador, o de que aproximadamente 99% dos municípios do Ceará possuem planos para a primeira infância.
O conselheiro, entretanto, ressalvou que, na contramão da informação positiva, estava outra, levantada pela Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, a de que cerca de 61% das crianças em situação de pobreza — mais de 62 mil meninas e meninos — em todo estado estavam fora das creches. A contradição, argumentou ele, indicou que algo estava errado.
Ações em 2024
Para efetivar esses planejamentos, de modo que eles pudessem sair do papel e dessem retorno, ações passaram a ser tocadas desde abril deste ano. A equipe em parceria com a Funcap foi a primeira delas. Porém, como desdobramento, outras iniciativas passaram a compor a linha do tempo da atenção à primeira infância pelo Tribunal.
Fiscalizações foram promovidas no período (nos eixos de Educação, Saneamento, Segurança, Infraestrutura, Saúde, Orçamento e Intersetorialidade), um comitê intersetorial foi formado, oficinas de capacitação sobre políticas públicas foram executadas, assim como um seminário voltado para o tema também chegou a ser realizado.
Os dispositivos que asseguram os recursos públicos não são poucos e compõem o quadro de desafios enfrentados pela Corte ao se debruçar sobre o tema. No quesito das políticas setoriais estão o Plano Nacional de Educação (PNE), o Plano Nacional de Saúde, o Plano Decenal dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes e o Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social. Além deles, estão nessa listagem os Planos Nacional e Estadual de Primeira Infância.
Todos esses instrumentos governamentais têm indicadores e metas, que são utilizados como premissas para a atuação do TCE-CE. Mas, a partir das frentes de trabalho, a ideia é que, tanto as prefeituras quanto os próprios colaboradores do órgão de controle, possam colocar em prática o que dizem os textos e também tenham mais insumos para qualificar o grande volume de recursos públicos investido.
Para se ter uma ideia do dinheiro gasto, somente em 2023, pelo que contabilizou o Tribunal, foram destinados pelos municípios R$ 2,36 bilhões na primeira infância, enquanto o Governo do Estado executou R$ 243 milhões. Também constam no cálculo do gasto público monitorado outros montantes, direcionados mediante programas de transferência de recursos.
Dados fornecidos pelo TCE indicam políticas a exemplo do Cartão Mais Infância (que de 2019 a 2024 direcionou R$ 637,82 milhões), do Primeira Infância no SUAS (que em 2023 transferiu R$ 33 milhões), do Bolsa Família (que em 2023 destinou R$ 50 milhões a famílias cearenses), da Rede Cegonha (que beneficiou gestantes do Ceará com R$ 1,2 milhão) e da Educação Infantil (que foi beneficiada com R$ 53 milhões em 2023).
Foco em 2025
A promessa é de que o assunto ganhe mais ênfase no TCE-CE no decorrer de 2025. No raio de incursões futuras ou que estão em andamento estão a instituição de um Observatório Municipal da Primeira Infância, a implementação de um painel de dados, a realização de mais fiscalizações, a formalização de um Pacto Pela Primeira Infância e outras ações que possibilitem colaboração, parceria, sensibilização e capacitação.
Da mesma maneira como tem premiado administrações municipais que desempenham um bom trabalho no quesito transparência e sustentabilidade, o TCE-CE também vislumbra, no próximo ano, conceder uma certificação para as municipalidades que apresentem boas práticas de gestão no âmbito da primeira infância.
“Está, dentro das nossas possibilidades, das nossas ideias, estabelecer um selo do próprio Tribunal, em parceria com o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), para certificar os municípios campeões na questão do cuidado com a primeira infância”, discorreu o presidente Rholden Queiroz em conversa com a reportagem.
As ações de inspeção e o apoio em atividades de controle externo do TCE-CE são tocadas por uma divisão específica do órgão, a Secretaria Executiva de Fiscalização. Chefe do setor, Gennison Lins deu detalhes do serviço que tem sido tocado pelas equipes.
“Tem sido feita uma atuação multi-institucional até, com o intuito de dialogar com esses órgãos e criar uma espécie de diagnóstico de como está a questão de acesso, como estão sendo as dificuldades enfrentadas”, articulou Lins, ao falar da participação da Funcap, Unicef e do Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE).
Viés preparatório e articulações
Gennison Lins descreveu que, este ano, o esforço maior foi em um viés preparatório. “Esse ano tem sido muito moldado pelo levantamento de informações, de dados, com relação à primeira infância”, destacou, dando conta das capacitações, ações de sensibilização e eventos promovidos no decorrer do ano.
Tivemos algumas dificuldades de observar e tirar algumas conclusões do orçamento. Então esse foi um dos direcionamentos nossos. E, já no começo do ano, devemos fazer uma nota técnica para tentar uma metodologia que a gente consiga rastrear como estão sendo direcionadas as despesas para essa área.
Problemas também são enfrentados pelos municípios quanto à primeira infância. Consultada, a gerente de Políticas Públicas da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, Karina Fasson, lançou luz em um fator relacionado com as limitações do Município enquanto ente.
A gente tem que considerar que, no Brasil, a maior parte dos nossos municípios são de pequeno porte, com menos habitantes. E isso geralmente está associado a uma gestão pública mais enxuta, a uma capacidade institucional mais limitada, para o planejamento e a execução das políticas de primeira infância de uma forma mais autônoma e isolada.
Fasson chamou atenção para uma “colaboração dos outros entes federados”. “É fundamental que o Município possa trabalhar em cooperação com o estado e com o governo federal para alavancar essas políticas de primeira infância”, justificou.
Na visão da representante da organização, que promove uma incidência na promoção de políticas de primeira infância, os governos estaduais possuem um “maior potencial de escalar as políticas públicas de primeira infância” e “histórias bem-sucedidas” de cooperação fortalecem esse argumento.
A entrevistada não deixou de lado a relevância da articulação do Poder Público com outros atores, tais como organismos multilaterais e o terceiro setor. No entendimento dela, tais parcerias têm se mostrado “bastante frutíferas”.
Fasson também apontou para a importância do Tribunal de Contas, do Ministério Público e demais organismos. Não apenas de fiscalização dos recursos empregados, mas nos trabalhos de “qualificação e apoio técnico”.
“Quando a gente pensa na governança dessas políticas, é fundamental que a gente pense também para além dos Executivos federal, estadual ou municipal. Eles têm, obviamente, um papel bastante relevante, mas é fundamental considerar o papel dos outros órgãos”, frisou.