Unidos até então pela carreira sacerdotal, o padre Lino Allegri juntou-se a outro rol de católicos que inclui nomes como dom Hélder Câmara, dom Aloísio Lorscheider e dom Antônio Fragoso. Em comum, todos sofreram perseguições e ameaças por seus posicionamentos de cunho político. Separadas por cerca de 50 anos, as agressões vividas pelos sacerdotes não são casos isolados na história do Brasil.
O Diário do Nordeste ouviu pesquisadores para contar a história desses e de outros líderes religiosos, entender as origens da tensão envolvendo integrantes da Igreja Católica e como as perseguições ocorreram ao longo do tempo.
Intimidações na paróquia
No caso envolvendo padre Lino, a arena das hostilidades foi a Paróquia da Paz, na Aldeota, onde ele é sacerdote. Após criticar a conduta do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) na gestão da pandemia da Covid-19, o religioso passou a ser intimidado por católicos apoiadores do político.
Em 4 de julho, quando avaliou negativamente a conduta do Governo Federal, o sacerdote sofreu com a reação de pelo menos oito fiéis, que o chamaram de “comunista”, “lulista” e “esquerdista”.
Na semana seguinte, um militar reformado agrediu verbalmente o religioso durante uma cerimônia na paróquia. De acordo com o padre, em entrevista ao Diário do Nordeste, as agressões contra ele e membros da igreja são constantes e ocorrem por meio das caixas de diálogo dos perfis da paróquia nas redes sociais, e, também, por meio do WhatsApp.
“O que está acontecendo com o Lino é o resultado do encontro de um padre do século XX, mais progressista, com fiéis do século XXI, mais reacionários. E esses dois estratos não falam a mesma língua. Esse discurso da Igreja social, da opção pelos pobres, é do século passado. Hoje, a corrente dominante é a de conservadores, da renovação carismática”.
“Nuvens no céu azul”
Segundo o historiador Fábio José Cavalcanti Queiroz, professor de História da América na Universidade Regional do Cariri (Urca), desde que os primeiros jesuítas pisaram no Brasil os discursos religiosos aparecem como foco de tensão em vários momentos da história. “Não podemos achar que o caso do padre Lino é uma nuvem que apareceu de repente em um céu azul”, afirma.
De acordo com ele, como instituição, a Igreja Católica sempre esteve mais próxima aos chamados “homens bons”. “Desde a época colonial, ela está conectada com aqueles que têm posses, com os brancos, é esse o lastro da Igreja, mas houve choques. Os discursos do padre Antônio Vieira, por exemplo, entraram em uma zona de tensão com os interesses dos colonos que queriam escravizar os indígenas”, relata.
Seguindo na história brasileira, durante o fim da monarquia, as tensões se transformaram em violência física e até na morte de religiosos.
“Durante a Revolução de 1817 (movimento separatista também chamado de Revolução dos Padres), sacerdotes foram executados por forças portuguesas. Em 1824, durante a Confederação do Equador, o frei Caneca também foi executado. Outro choque grande foi quando mandaram prender Antônio de Macedo Costa, bispo do Pará, e dom Vital de Oliveira, bispo de Pernambuco”, conta o historiador.
Queiroz, no entanto, pondera que até então esses casos mantinham-se como pontuais.
“As instituições não são blocos monolíticos. Essas contradições tendem a explodir em momentos em que as instituições, em contato com outras, em conflito de classe, terminam tendo que atuar concretamente, aí se começa a manifestar contradições”.
Repressão institucional
Com a implantação da ditadura militar no Brasil, em 1964, os conflitos tornaram-se mais comuns e a heterogeneidade da Igreja ficou mais evidente, aponta o historiador, que pesquisou em seu doutorado o período do governo militar e o papel de padres, coronéis e ativistas sociais no Cariri.
Ele destaca que, inicialmente, parte dos católicos apoiaram a tomada de poder pelos militares movidos pela aversão ao comunismo, motivação que também é apontada justamente pelos que hostilizam padre Lino atualmente.
“Vejo que os tanques e os terços se uniram através do anticomunismo. A partir disso, houve a construção de um lastro de solidariedade ao golpe, até com a organização das caminhadas em apoio a Deus, à Pátria e à família”, afirma.
Padres presos entre 1968 e 1970 no Brasil, durante a ditadura militar, segundo o pesquisador Fábio José Cavalcanti Queiroz.
Com o poder dos generais consolidado, a heterogeneidade do clero começou a ficar mais evidente. “Os atritos não demoraram. Chamo atenção para o próprio dom Helder Câmara, nascido em Fortaleza, que criou uma crise quando se recusou a fazer uma celebração para comemorar o golpe, gerando insatisfação no general Castelo Branco”, relembra o historiador.
À época, com a escalada de tensão, um padre auxiliar de dom Hélder foi sequestrado, torturado e morto. Depois do episódio, o sacerdote cearense intensificou as denúncias que fazia fora do Brasil da repressão. Ainda durante o regime, dom Aloísio Lorscheider chegou a ser detido por agentes do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS). De acordo com Queiroz, entre 1968 e 1970, 29 padres foram presos pelo regime militar.
Padres perseguidos
A repressão foi revelada também em uma matéria do Diário do Nordeste de 3 de janeiro de 2005. Intitulada “Segredos da ditadura”, a reportagem teve acesso a documentos que narravam perseguições e punições contra nove religiosos contrários ao regime militar.
"Em Mundaú, Serra do Félix, Beberibe, Tauá, Iguatu, Sobral, Quixadá, Aratuba, Santa Quitéria, Capistrano de Abreu, Canindé, Crateús, além de outros municípios, líderes religiosos passaram pelo controle dos órgãos de segurança. Segundo documentos, essas localidades possuíam 'padres inteligentes, ativos, com grande penetração no meio rural'".
Em outro trecho, a reportagem mostra arquivos do monitoramento feito pelos militares contra dom Paulo Evaristo Arns, dom Hélder Câmara e dom Aloísio Lorscheider, então presidente da CNBB.
À época, dom Aloísio comentou as revelações. "Não há dúvida de que tínhamos consciência de estarmos sendo vigiados. Um dia, vindo de Brasília, onde fui falar com pessoas do Governo, um alto funcionário do Ministério da Justiça me disse que o meu nome se encontrava na lista 'negra'", relatou.
"Quando já era arcebispo de Fortaleza e, ao mesmo tempo, presidente da CNBB, era monitorado, sim, mas não me impressionava. Continuava a cumprir meu dever e a defender a quem eu julgava que deveria defender", declarou.
“Subversivo”
Ainda segundo a reportagem, um dos principais alvos dos militares era dom Antônio Fragoso, da diocese de Crateús, que foi acusado pelo regime de ser “subversivo, agitador e socialista”. "Ele lembra que os padres eram, ainda, 'escutados com gravações nas missas, caluniados diante do povo'”, relata a reportagem.
Segundo o historiador Fábio Queiroz, no caso de Crateús havia um agravante, do ponto de vista dos militares, porque a região tinha forte educação política devido à organização sindical e política dos ferroviários e camponeses da região.
“Depois do golpe, os militares instauraram vários inquéritos militares contra pessoas da cidade em uma tentativa de cercear o trabalho de dom Fragoso. Foram tantos presos políticos que o prefeito chegou a construir um anexo só para eles na cadeia”, conta.
De Fragoso a Lino
Para o historiador, o episódio envolvendo padre Lino resgata as perseguições sofridas pelos religiosos durante o período militar. “Fico me perguntando quais crimes eles cometeram, porque eram religiosos que defendiam apenas uma igreja popular e libertadora, uma educação de base e lutavam contra as desigualdades”, afirma
“E aqui faço um paralelo com o que acontece com o padre Lino. Assim como dom Hélder, dom Fragoso e dom Aloísio, o que ele faz é ser um fluxo de más notícias sobre o Governo, ele está apenas difundindo essas informações, o que era e é visto como um desrespeito. Os que o ameaçam hoje também estariam ameaçando os dom Hélder e dom Aloísio”, acrescenta o historiador.
Em entrevista ao Diário do Nordeste no último dia 20, padre Lino reforçou a ideia de uma "Igreja em saída", termo usado na primeira carta escrita pelo papa Francisco.
"Ele (papa Francisco) diz que prefere uma igreja que se suja, enlameada porque está no meio do povo, do que uma igreja que morre asfixiada dentro de suas paredes olhando apenas para si mesma e não para o povo".
Para Fábio Queiroz, esse discurso também reflete as transformações sofridas pela Igreja Católica no século XX. Nascido na Itália, padre Lino foi ordenado para a vida sacerdotal em 1965, época em que a imagem do padre-operário era muito difundida na Europa.
Esse grupo de religiosos se dividia entre o trabalho nas fábricas e as celebrações católicas. A ideia era aproximar a Igreja da comunidade. Lino não chegou a ser um padre-operário na Itália, mas desembarcou no Brasil com essa influência.
Paralelamente, a Igreja Católica passava por mudanças significativas. “Foram mudanças profundas depois do Concílio Vaticano II, realizado em dezembro de 1961, e da Segunda Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, de onde nasce a Teologia da Libertação (corrente que busca levar o Evangelho para pessoas necessitadas e marginalizadas da sociedade), através do padre peruano Gustavo Gutiérrez e do teólogo Leonardo Boff, então Lino dialoga com tudo isso”, aponta o historiador.
Transformações católicas
Para o cientista político Emanuel Freitas, essas ideias, no entanto, são minoritárias na Igreja do século XXI.
“Nos últimos 30 anos, o clero passou a ter uma inclinação maior ao conservadorismo. Essas ideias como a do padre Lino, ou mesmo do padre Júlio Lancellotti, de São Paulo, vítima desses grupos, não ressoam mais dentro da Igreja. Quem sustenta a Igreja hoje são os carismáticos”.
Diante disso, Freitas aponta a proximidade desses grupos conservadores com o presidente Jair Bolsonaro. “A Igreja Católica que não está apoiando o Governo (Federal) é pequena. Há bispos na CNBB que se posicionam contra, mas isso é ilusório, porque os bispos são minoria. Grande parte dos católicos e os ‘padres celebridades’ que falam para milhares de pessoas diariamente não são contra o Governo. Então, qual Igreja tem mais força?”, questiona o cientista político.
Para ele, essa proximidade reflete até mesmo na conduta de alguns fiéis, que passam a agir na Igreja como agem na política. “A reação ao padre Lino é o modus operandi do bolsonarismo, que é cercear os que se opõem de uma forma militarista, como um inimigo a ser destruído, sob um plano de fundo do autoritarismo. A própria linguagem usada é de extermínio, porque o opositor, no caso, o padre Lino, é visto como um perigo político – e também espiritual”, conclui.
Proteção
Diante da ofensiva, o sacerdote teve o nome incluído no Programa de Proteção a Defensoras e Defensores dos Direitos Humanos. A iniciativa busca garantir a segurança de pessoas que defendem os direitos humanos e estão em situação de ameaça ou risco à continuidade do trabalho.
No último domingo (25), o pároco voltou a celebrar missas na Paróquia da Paz, no bairro Aldeota. Policiais militares estiveram no local para dar apoio a possíveis ocorrências envolvendo fiéis, funcionários do local ou o sacerdote.
“Para mim isto é um sinal muito perigoso. Como será em 2022? É o ódio que vai aparecer. Eu acho legítimo que as pessoas pensem diferente. Mas que isso me autorize a usar de violência com o outro? Isso não está certo”, disse padre Lino em entrevista recente ao Diário do Nordeste.