Consórcio Nordeste aciona Justiça para empresa devolver R$ 48 milhões

Grupo contratou a empresa que se apresentava como revendedora de uma fabricante chinesa de ventiladores mecânicos. Depois de atrasos na entrega dos 300 equipamentos, o Consórcio fez denuncia por suspeitar de fraude

Escrito por Alessandra Castro , alessandra.castro@svm.com.br
Legenda: Estados tentavam adquirir 300 respiradores mecânicos de fabricação chinesa
Foto: Helene Santos

O Consórcio Nordeste, formado pelos governos dos nove estados da região, acionou a Justiça para reaver os R$ 48 milhões pagos em abril à empresa Hemp Care. O valor foi repassado para aquisição de 300 respiradores. A empresa se apresentava como revendedora de uma fabricante chinesa de ventiladores pulmonares.

O montante formado por recursos dos nove estados foi pago para garantir os equipamentos diante da disputa no mercado internacional. A informação foi confirmada ao Diário do Nordeste pelo Governo do Estado do Ceará, que integra o Consórcio e esperava adquirir os equipamentos para reforçar a estrutura especializada das unidades públicas de saúde, no combate à pandemia do coronavírus.

De acordo com o Governo do Estado, o Ceará entrou com R$ 5,4 milhões na compra feita pelo Consórcio Nordeste. O valor corresponde a uma cota de 50 respiradores dos 300 que seriam adquiridos pelo grupo. Os recursos desembolsados pelo Consórcio Nordeste, agora, estão sendo cobrados na Justiça. A empresa suspeita de fraude e as pessoas envolvidas estão sendo acionadas para restituição por quebra de contrato.

O Tribunal de Justiça da Bahia já bloqueou 150 contas bancárias de pessoas ligadas à 'Hemp Care', para garantir a restituição do montante empregado, conforme informou o Governo da Bahia, que coordena o consórcio, em nota.

O processo sobre o caso foi encaminhado para o Superior Tribunal de Justiça (STJ) nesta semana, por conter acusações envolvendo pessoas com foro privilegiado, que só podem ser investigadas por instâncias superiores.

Embates políticos

O caso acontece em meio a um cenário conturbado na relação de governadores com o Governo Federal. Na última sexta-feira (12), os nove gestores regionais emitiram uma carta conjunta repudiam algumas atitudes do Governo Federal, como declarações recentes do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) sugerindo à população a entrar em hospitais para tirar "fotos de leitos vazios", insinuando que os dados divulgados pelas secretarias de saúde podem estar sendo adulterados; e operações da Polícia Federal (PF) nos estados deflagradas após trocas de críticas políticas.

No documento, os gestores estaduais da região salientam ser favoráveis às operações para investigar supostas fraudes, para o combate a Covid-19, mas criticam a forma como os governos estaduais têm sido tratados.

"Intensificaram-se as ações espetaculares, inclusive nas casas de governadores, sem haver sequer a prévia oitiva dos investigados e a requisição de documentos. É como se houvesse uma absurda presunção de que todos os processos de compra neste período de pandemia fossem fraudados, e governadores de tudo saberiam", disseram por meio da carta.

Operação

Na segunda-feira passada (8), a Polícia Civil da Bahia deflagrou uma operação contra pessoas ligadas à Hemp Care após denúncias do próprio presidente do Consórcio Nordeste, Rui Costa (PT), que também é governador da Bahia, de uma possível fraude na venda dos equipamentos.

Os respiradores iriam compor leitos de UTI e CTI destinados unicamente a pacientes com a Covid-19. As suspeitas surgiram após diversas tentativas de reaver o dinheiro após atrasos contínuos na entrega dos equipamentos.

A operação, batizada de "Ragnarok", cumpriu mandados de busca, apreensão e prisão em Salvador, Brasília, Rio de Janeiro e em São Paulo, onde fica a sede da empresa. A operação contou com a participação das polícias civis de SP e do DF, além do Ministério Público da Bahia (MPBA). Dois sócios da Hemp Care e um empresário foram presos, mas liberados após prestarem depoimento.

O secretário de Segurança Pública da Bahia (SSP-BA), Maurício Barbosa, detalhou que, durante a investigação, a Polícia descobriu que a empresa chinesa de respiradores, da qual a Hemp Care se dizia revendedora, atuava, na verdade, do segmento da construção civil.

"Chegou ao nosso conhecimento, cerca de 20 dias atrás, a suspeita muito forte de que a contratação feita não se tratava de um descumprimento contratual, mas de uma fraude. Além de não entregar o produto, vinha evitando a devolução do recurso. Então, instauramos inquérito na Polícia Civil e constatamos que o contrato fechado com a empresa chinesa era falsificado. A empresa que a contratada alegava ser a fabricante chinesa de respiradores era, na verdade, uma empresa da construção civil, de acordo com a embaixada do país asiático", explicou o secretário.

Tentativas

O secretário explicou, ainda, que um dos proprietários da empresa alegou ter tentado adquirir produtos nacionais, depois que não conseguiu comprar os respiradores fora do País. Os equipamentos nacionais, contudo, teriam sido rejeitados pelo Governo da Bahia, por não possuírem aval da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para o tratamento de pacientes com Covid-19. Maurício Barbosa acrescenta, no entanto, que esses respiradores também não existem.

"Sabemos que isso poderia se tornar uma fraude ainda maior, se essas outras tentativas de compra fossem à frente", explica o secretário de Segurança Pública baiano. "Agora, estamos na busca incessante para recuperação do recurso e para levantar provas para incluir no inquérito e futuro processo judicial. Os respiradores nacionais colocados como opção, quando não entregaram a carga chinesa, também não existem. Informaram, inclusive, que havia a expectativa de se conseguir uma autorização da Anvisa para liberar peças e o dinheiro adiantado pelo Consórcio Nordeste agilizaria a montagem desses respiradores".

A investigação é ampla e busca descobrir se a empresa está envolvida em outras fraudes. "Estamos apurando, ainda, se há outras ou se a farsa foi montada apenas para o golpe no Consórcio e outras entidades em função do combate à Covid-19", reforçou.

Comitê parlamentar é criado para fiscalizar Consórcio

Diante das suspeitas de fraude na compra de respiradores, um grupo de 23 deputados dos nove estados do Nordeste formaram um comitê parlamentar interestadual para fiscalizar ações do Consórcio Nordeste. A comissão é formada por parlamentares da oposição, independentes e da base de seus respectivos governos estaduais. Dentre eles, está o deputado estadual do Ceará Delegado Cavalcante (PSL). Nesta semana, eles enviaram uma carta de intenções e um ofício cobrando esclarecimentos sobre a transação para adquirir os 300 respiradores mecânicos.

No documento, eles pedem a cópia da resolução do Consórcio, contratos de rateio para compra dos respiradores, cópia dos procedimentos licitatórios, entre outros documentos que comprovem os gastos feitos pelos governantes.

De acordo com o coordenador do comitê, deputado David Maia (DEM-AL), o que o comitê quer é uma constante demonstração de transparência do Consórcio Nordeste, tendo em vista que as ações do grupo são financiadas com recursos públicos estaduais. Ele salienta, ainda, que o Consórcio tem um custo com funcionários e administrativo e que o grupo não é fiscalizado por nenhum tribunal de contas por não ser um órgão governamental, apesar da origem dos valores que o mantém.

"A gente quer descobrir o que aconteceu com o dinheiro, quem é o responsável e quer a devolução imediata do dinheiro para os cofres dos estados. A gente entende que o Consórcio é sim uma ferramenta de gestão pública, mas achamos que ele está sendo descaracterizado porque tem apenas caráter político. O Consórcio não tem um portal da transparência. Você não sabe quanto o Consórcio gasta com funcionários, com as ações. O que a gente descobre é pelos diários oficiais ou pela imprensa. A gente quer transparência", reforça.

O governador da Bahia e presidente do Consórcio Nordeste, Rui Costa, critica a politização realizada neste momento que deveria ter como foco o combate à disseminação da Covid-19.

"Neste momento, se criou uma disputa política e uma confusão jurídica. Há muita contaminação política e, infelizmente, a preservação da vida humana acaba ficando em segundo plano. A prioridade está na disputa política, que muitas vezes é levada para o campo dos procedimentos legais. Queremos o mais rápido possível a identificação dos culpados e devolução do dinheiro, pois estamos precisando desse recurso para continuar salvando vidas humanas", ressaltou.

 

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