Há exatamente um ano, policiais e bombeiros militares do Ceará cruzaram os braços e deflagraram um motim que durou 13 dias. O ato, que já no segundo dia ganhou destaque nacional com um senador baleado, provocou impactos na política local, reuniu diversas instituições e gerou resultados eleitorais aquém do esperado para as lideranças, conforme apontam cientistas políticos.
“Um ano depois, o que vejo é um saldo negativo para ambos os lados. A categoria sofreu um golpe na hierarquia, e isso abre precedentes perigosos. Sem falar na imagem negativa que ficou para a tropa”, aponta Cleyton Monte, cientista político e pesquisador do Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia (Lepem) da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Já para o Governo, ele aponta que houve uma perda de controle da tropa. “Não tem como atribuir essa perda de controle a algo externo. E o interesse das lideranças do motim em disputar cargos políticos é natural, ocorre com qualquer movimento”, acrescenta Monte.
De imediato, à época, a ação dos policiais trouxe lembranças de movimento semelhante ocorrido em 2012, quando a paralisação dos militares alçou nomes como Capitão Wagner (Pros), atualmente deputado federal, e Cabo Sabino (Avante), ex-deputado federal. Na esteira da participação de militares na política, surgiu também Soldado Noélio (Pros), que hoje ocupa vaga como deputado estadual.
Negociações iniciais
Já em 2020, esses políticos que ganharam projeção na primeira paralisação apareceram em negociações iniciais para tentar articular novas propostas para a categoria. Wagner, por exemplo, trouxe uma comitiva de deputados federais ao Ceará para dialogar com a tropa.
Contudo, os mesmos nomes que, por anos, foram as vozes da categoria em reivindicações acabaram sofrendo um revés. Em 13 de fevereiro, cinco dias antes do motim, Wagner e Noélio celebraram um acordo com o Governo do Estado. Contudo, os praças rechaçaram a proposta após o anúncio.
A partir dali, novas lideranças tomaram a frente dos atos, que também passaram por um recrudescimento. Nomes como Cabo Sabino, Nina Carvalho (Republicanos), presidente da Associação das Esposas de Policiais do Ceará, e Soldado Wescley (Avante) daria cara ao movimento naquele momento. No entanto, o desfecho foi diferente para essas lideranças se comparado a 2012.
Sabino, atualmente, responde processos por incitar motim e por disseminar fake news. O ex-parlamentar também não teve o mesmo retorno eleitoral que obteve em 2012. Ele tentou vaga na Câmara dos vereadores de Fortaleza, mas obteve apenas 2.589 votos e não foi eleito.
Nina Carvalho (Republicanos), presidente da Associação das Esposas de Policiais do Ceará, lançou-se como candidata a vereador pelo Republicanos, mas, com 385 votos, está como suplente da sigla. Outros nomes envolvidos no motim, como Soldado Wescley (Avante), Adriano Bento (PSL) e Cabo Monteiro (Pros) também fracassaram nas urnas.
Luiz Fábio Paiva, professor de Sociologia e pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência da UFC, aponta que o movimento dos militares recebeu pouca adesão dos cearenses. “A paralisação de 2012 tinha outra configuração política. Havia um cenário de insatisfação e uma tensão crescente com o Governo. Houve muito apoio popular, não à toa aquelas lideranças se tornaram lideranças políticas que, inclusive, naquele momento, tinham apoio de grupos de esquerda”, destaca.
O cientista político Raulino Pessoa Júnior reforça essa avaliação. “Desta vez, no Ceará, a manifestação, que ganhou status de motim, foi muito mal vista, bem diferente de 2012. Mesmo com a influência nacional, o contexto do Ceará é diferente, por isso teve esse impacto na campanha”, disse.
Eleições 2020
Os impactos políticos do motim ganharam protagonismo na disputa pela Prefeitura de Fortaleza. Durante sabatina ao programa Ponto Poder Eleições, do Diário do Nordeste, Capitão Wagner negou ter sido favorável ao motim promovido por grupos de PMs.
A declaração fez com que o governador Camilo Santana entrasse de cabeça na campanha, rebatendo o adversário. Vídeos das manifestações foram usados também na propaganda eleitoral contra Wagner, principalmente pelo atual prefeito de Fortaleza, José Sarto (PDT).
“O motim criou uma marca de irresponsabilidade em torno dos envolvidos, e isso foi usado contra o Wagner, que, por mais que tenha lutado para apaziguar a situação, como ele diz, mas havia a presença, a imagem dele deu legitimidade ao movimento. Para a sociedade, ficou uma marca negativa”, aponta o cientista político Cleyton Monte.
Cid baleado
Em Sobral, ações de amotinados ganharam projeção nacional. Em 19 de fevereiro, um grupo circulou pela cidade em viaturas ordenando o fechamento do comércio. Diante das cenas, o senador Cid Gomes (PDT) circulou pela cidade com uma retroescavadeira e tentou furar o bloqueio dos manifestantes com o veículo. Na ação, ele foi baleado duas vezes.
“Nas últimas eleições, isso foi incorporado politicamente. Ivo (Gomes, prefeito de Sobral e irmão de Cid) se colocou na disputa como um protetor da cidade. Na convenção, Ciro Gomes chegou a falar que igual houver um Ferreira Gomes em Sobral haverá alguém de peito aberto para defender a cidade, isso é politicamente muito simbólico”, aponta Cleyton Monte.
Em entrevista recente ao Diário do Nordeste, o senador comentou sobre como avalia o episódio um ano depois. “Tinham armado uma barricada, e o que eu fiz foi romper a barricada. Se você me perguntar se eu faria de novo, se essa sucessão de fatos tivesse acontecido, eu faria”, afirmou o senador.
Em meio à repercussão do disparo contra Cid, membros de diversas instituições cearenses reforçaram as tentativas de negociações para pôr fim ao motim. Uma comissão envolvendo a Assembleia Legislativa, o Ministério Público, o Tribunal de Justiça, Ordem dos Advogados do Brasil Secção Ceará, além da Defensoria Pública do Ceará passaram a sentar em mesas de negociações com o Governo do Estado e com os amotinados.
Paralelamente, o Governo do Estado encaminhou à Assembleia Legislativa uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) estadual que proibiu a anistia a policiais que paralisaram suas atividades. O perdão aos militares tinha virado a principal pauta dos agentes durante o motim.
A paralisação só chegou ao fim no dia 1º de março, quando a categoria aceitou voltar aos trabalhos em troca de não sofrer perseguição, com amplo direito à defesa e contraditório. O Governo do Ceará também garantiu que não iria transferir policiais para o interior do estado em um prazo de 60 dias e prometeu investir R$ 495 milhões no salário de policiais até 2022.
Motim no Ceará
Confira a linha do tempo sobre a paralisação de parte da Polícia Militar no Ceará em 2020
- 31/1 - Governo do Estado apresenta proposta de reajuste para os policiais militares
- 6/2 - Policiais e bombeiros militares protestam em frente à Assembleia Legislativa
- 13/2 - Capitão Wagner e Soldado Noélio anunciam acordo com o Governo do Estado
- 14/2 - Parte da categoria rejeita acordo e marca manifestação contra o Governo
- 17/2 - Justiça estabelece pena para entidades militares que se envolverem em greve
- 18/2 - Policiais cruzam os braços e começam a tomar quartéis e a depredar viaturas
- 19/2 - Cid Gomes é baleado ao tentar romper bloqueio feito por amotinados
- 20/2 - Comitiva de parlamentares dialoga com a tropa à convite de Capitão Wagner
- 21/2 - Exército e Força Nacional reforçam segurança nas ruas
- 22/2 - Estado afasta 168 militares e 77 viram desertores
- 23/2 - Governo abre processo contra Cabo Sabino
- 24/2 - Ministro Sérgio Moro visita Fortaleza
- 25/2 - Comissão com membros do Legislativo, do Executivo e do Judiciário negocia fim do motim
- 27/2 - Militares recusam nova proposta do Governo
- 28/2 - Camilo envia PEC que proíbe anistia aos amotinados
- 29/2 - Em sessão extraordinária, deputados aprovam PEC que veda anistia a PMs
- 1º/3 - PMs aceitam nova proposta e encerram motim