Após uma semana de apurações, inspeções e coletas de documentos, fiscais do Tribunal de Contas do Ceará (TCE) concluíram ontem a primeira etapa da ação para prevenir desmontes em prefeituras cearenses. Ao todo, 18 municípios foram examinados, dos quais oito com visitas presenciais. Até a próxima sexta-feira (11), os fiscais elaboram relatórios sobre possíveis irregularidades na administração pública em meio ao período de transição entre gestões. Os documentos serão submetidos a conselheiros da Corte de Contas e podem ser usados pelo Ministério Público do Ceará (MPCE) para ajuizar ações.
As duas instituições atuam em parceria desde agosto para definir estratégias de trabalho. O plano definiu uma “matriz de risco” com 18 municípios, que levou em conta prefeitos que não conseguiram se reeleger e não elegeram aliados. Passaram por inspeção presencial as prefeituras de Alto Santo, Ererê, Russas, Jaguaribe, Antonina do Norte, Boa Viagem, Maranguape e Trairi.
“Nesses casos, não necessariamente a situação é melhor ou pior que a dos outros dez. A visita se deu porque os procedimentos a serem verificados precisavam ser in loco, não teria como serem feitos de forma virtual”, ressaltou Carlos Nascimento, secretário de Controle Externo do TCE.
“Cada município é analisado individualmente, em alguns colhemos informações sobre contratos e serviços, que estão em sistemas públicos. Já em outros observamos efetiva prestação de serviços, por isso precisamos ir”.
De acordo com o TCE, a inspeção tem dois focos: um direcionado à busca de possíveis irregularidades durante os registros contábeis, financeiros e patrimoniais; e outro com o intuito de identificar possíveis irregularidades em gastos com pessoal.
Continuidade
Segundo Nascimento, além da “dilapidação do patrimônio”, outro foco dos fiscais é a continuidade de serviços como a coleta de lixo, o transporte escolar e a locação de veículos. “Em alguns casos, os contratos têm vigência até dia 31 de dezembro, então verificamos se há como prorrogar ou já adiantar alguma licitação”.
Nas buscas, os fiscais podem solicitar às gestões municipais a lista de bens, dívidas e credores, além das datas de vencimentos. Os contratos de obras, serviços e fornecedores são averiguados. Há ainda o levantamento das ações judiciais que envolvem o município, investigando o cumprimento de prazos, a situação em que se encontram os processos, a instância que irá julgá-los. A situação da dívida ativa, em cobrança administrativa ou judicial, é analisada, bem como dos créditos, além da folha de pagamento.
Orientação
Para orientar gestores, o TCE também elaborou uma cartilha com orientações de boas práticas de transição. Paralelamente, o MPCE já emitiu 12 recomendações para que as prefeituras de Aquiraz, Aurora, Pacoti, Jati, Penaforte, Cariré, Groaíras, Boa Viagem, Juazeiro do Norte, Quixeramobim, Martinópole e Acaraú estabeleçam comissões de transição mista entre as gestões.
De acordo com Vanja Fontenele, coordenadora da Procuradoria dos Crimes contra a Administração Pública (Procap), do MPCE, o alvo são municípios em que as atuais gestões fracassaram em se reeleger ou em deixar algum aliado como sucessor.
“Neste ano, temos uma desafio muito maior com o adiamento das eleições. Em 2016, por exemplo, tivemos cerca de três meses. Com a pandemia, tivemos o final de novembro e o começo de dezembro para fazer essa fiscalização”, observa a procuradora.
Caso as recomendações sejam descumpridas, o MPCE pode ajuizar ações por improbidade administrativa. As medidas são amparadas no que prevê a Constituição Federal, em seu artigo 70, e na Lei Complementar nº 101/2000 (Responsabilidade Fiscal),sobre os deveres de transparência da gestão fiscal e da prestação de contas. As recomendações também são embasadas nas disposições da Lei n° 8.429/1992 (Lei dos Atos de Improbidade Administrativa).
O MPCE segue ainda súmula do Tribunal de Contas da União (TCU), que estabelece a responsabilidade do novo gestor de apresentar a prestação de contas quando o anterior não o tiver feito.
“Os promotores seguem acompanhando os municípios. Recebem demandas de servidores que não receberam pagamento, evento de prefeito que não se conforma com a derrota e desaparece do município”, diz Vanja.
Com a pandemia, desmonte desafia novos gestores
Para cientistas políticos, além do cenário de pandemia, os gestores eleitos terão de enfrentar os desmontes na gestão pública. “É tão comum quanto prejudicial (o desmonte), e não ocorre apenas nos pequenos municípios”, aponta o cientista político Cleyton Monte, que também é professor universitário e pesquisador do Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia (Lepem) da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Conforme o pesquisador, a prática é “quase que cultural do modelo político brasileiro”. “E o desmonte não é só de estrutura, mas também de informações, de descontinuidade de políticas, e a população acaba sofrendo mais”.
Monte ressalta as ações das instituições fiscalizadoras e judiciais no combate a esse tipo de prática. “Mas há questões que só são percebidas após a posse, quando resta pouco a ser feito. É nocivo à democracia e à população”. De acordo com a cientista política Carla Michele Quaresma, professora do Centro Universitário Estácio do Ceará, as ações de desmonte são explicadas pela dificuldade de gestores distinguirem o público do privado.
“Tem, de um lado, o patrimonialismo, que é a confusão entre os bens públicos e os privados, e, do outro lado, uma incapacidade de convivência com essa oxigenação de poder que a democracia exige”, avalia.
Segundo ela, o desmonte é praticado com diversas finalidades, dentre as quais criar obstáculos ao novo gestor ou desaparecer com irregularidades.
“A população sempre acaba pagando o preço porque, no momento que estamos vivendo, é necessária uma transição rápida, é preciso entender o que foi feito. O próximo ano é desafiador, as ações precisam ser tomadas com velocidade, os próximos gestores não precisam de mais esse empecilho”.