Com cestas básicas e auxílios de emergência, combate à fome volta ao radar político no Ceará

Ações no Legislativo e Executivo tentam levar ajuda, com urgência, a quem corre o risco de não ter o que comer

Compra e distribuição de cestas básicas pela Assembleia Legislativa do Ceará, sucessivos projetos de auxílio no Poder Executivo e doação de salário de prefeitos para a compra de comida para a população: a mobilização de combate à fome tem ganhado força na política cearense diante de um cenário de insegurança alimentar agravado pela pandemia da Covid-19.

O enfrentamento à crise sanitária, desde março de 2020, supera o âmbito da Saúde. O crescimento do número de pessoas em situação de extrema pobreza junto ao aumento de famílias que enfrentam a fome em suas rotinas diárias têm reflexos no poder público, que busca medidas para proteger essa população em situação de vulnerabilidade social. 

Apesar da gravidade da situação, pesquisadores alertam para a ausência de ação coordenada pelo Governo Federal, assim como déficit de recursos destinados à proteção social. Falta de comida é um problema urgente e, por isso, ações emergenciais vêm ganhando destaque no Executivo e nos parlamentos para tentar socorrer a população.

Sociólogo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Rogério Baptistini aponta a importância de iniciativas políticas voltadas à população em situação de vulnerabilidade, mas argumenta o limite dessas ações. 

"As medidas são mais no sentido de ação social pontual, ações de emergências. Elas servem como leve manto na desgraça em que nos encontramos. Essas ações sociais emergenciais não resolvem o problema estrutural a essa altura"
Rogério Baptistini
Sociólogo

Aumento da vulnerabilidade social 

A mobilização de combate à fome não é nova no Brasil, mas volta a ser foco das políticas públicas.   O Brasil retornou ao Mapa da Fome em 2018, e, agora, vê a situação de extrema pobreza da população se agravar por conta do impacto político e social da pandemia. 

Levantamento realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), indica que nos últimos meses do ano passado 19 milhões de brasileiros passaram fome e mais da metade dos domicílios no país enfrentam algum grau de insegurança alimentar.

9%
Da população brasileira enfrenta algum grau de insegurança alimentar

O problema continua em 2021. Pesquisa Datafolha, publicada no dia 20 de maio, aponta que um a cada quatro brasileiros disse que a quantidade de comida na mesa para alimentar a família foi menor do que o suficiente nos últimos meses. A situação é mais grave para determinadas parcelas da população. 

“Frações mais vulnerabilizadas têm cor, têm gênero e territórios específicos. A parcela em mais vulnerabilidade são mulheres negras e chefes de família. Então, dentre essas ações, há a necessidade de priorizar esses públicos que estão em uma situação de vulnerabilidade e desigualdades que se entrecruzam”.
Leila Passos
Professora do curso de Serviço Social da Universidade Estadual do Ceará (Uece)

A pesquisa Datafolha apontou para o mesmo agravamento da situação de vulnerabilidade social: ela é mais sentida por mulheres, negros e pessoas menos escolarizadas. Segundo o levantamento, faltou comida para 40% dos que têm apenas o ensino fundamental completo. A fome foi mais sentida também entre moradores da região Nordeste.

Famílias com crianças também sentiram mais a fome: em 35% das casas com crianças de até 6 anos, houve menos comida na mesa do que o suficiente. 

“Dizem que estamos no mesmo mar e podemos até estar. Mas não estamos no mesmo barco. Essas pessoas não estão sequer com uma boia para sobreviver nesse mar”, ressalta Passos.

Mobilização no Legislativo

No Legislativo, parlamentares cearenses têm apresentado projetos com o intuito de garantir a distribuição de cestas básicas para a população do Estado, assim como criar benefícios para parcela da população mais afetada pela pandemia.

Lei que prevê a compra e a distribuição de cestas básicas, por exemplo, foi sancionada na quinta-feira (27), após ser aprovada pela Assembleia Legislativa do Ceará. A proposta é uma iniciativa da Mesa Diretora da Casa, que pretende distribuir 10 mil cestas básicas por mês, enquanto durar o decreto de calamidade pública no Estado.

Medidas semelhantes foram aprovadas pelos deputados estaduais, a partir de proposições do Governo do Ceará. Benefícios sociais como o custeio da conta de energia de 500 mil famílias de baixa renda, o auxílio cesta básica pago a trabalhadores, inclusive autônomos, e o benefício financeiro destinado a catadores são alguns exemplos. 

Além disso, o Estado também reforçou o pagamento do cartão Mais Infância e a distribuição de kits alimentícios entre as famílias com estudantes da rede pública de ensino, - políticas públicas efetivadas também nos municípios cearenses. 

“Essa pandemia não é só sanitária, ela é profundamente social. Afeta a condição de vida das pessoas e a forma como elas se relacionam”.
Ieda Castro
Presidente do colegiado Estadual dos Gestores Municipais de Assistência Social (Coegemas)

Efetividade das ações de combate à fome

Secretária Municipal de Assistência Social em São Benedito, Ieda Castro aponta que as demandas de políticas sociais têm sido crescentes nos municípios cearenses que integram o Coegemas - instituição que preside e reúne gestores municipais da área. 

As respostas do Poder Público para esta procura têm ocorrido por três caminhos: benefícios eventuais, transferência de renda e serviços especializados, detalha.

No primeiro deles, os benefícios eventuais, estão ações como auxílio funeral, vale-gás, ajuda para aluguel social e distribuição de cestas básicas para famílias de baixa renda. 

Prefeitos doam salários

Ações pontuais a partir da iniciativa de políticos eleitos para o Executivo e o Legislativo também fazem parte destas medidas. 

Em pelo menos cinco municípios cearenses prefeitos abriram mão, em março de 2021, do salário do cargo para tentar aliviar os efeitos da crise sanitária sobre a economia. Entre as ações, a compra de cesta básica. 

Iniciativa semelhante ocorreu em Fortaleza, onde vereadores e secretários também decidiram doar parte dos próprios salários para a compra de cestas básicas. 

Além destas medidas, propostas têm sido apresentadas no âmbito do Legislativo municipal e estadual para destinação de cestas básicas para categorias específicas da cidade, como motoristas de aplicativos e famílias inscritas no CadÚnico com familiares diagnosticados com Covid-19. 

"A maioria (dos projetos para benefícios eventuais) é para cesta básica. Eu entendo, porque hoje a fome é real. Então, há uma preocupação de evitar que as pessoas vivenciem a fome", afirma Ieda Castro.

Contudo, segundo ela, programas de transferência de renda são mais efetivos, principalmente quando se lida com diferentes realidades no estado. 

"A cesta básica não é a melhor alternativa, (porque) oferece itens que, às vezes, não são compatíveis com a cultura daquela família ou não são em quantidade suficiente", explica. 

Ela cita como exemplo casos de agricultores que têm acesso a alguns produtos alimentícios nas plantações, mas necessitam de carne, por exemplo. "A cesta acaba não sendo, do ponto de vista da segurança alimentar, a melhor opção. Ela pode matar a fome, mas não alimenta", explica. 

No ponto de serviços especializados, ela cita equipamentos como o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) e Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) como necessários para acolhimento de mulheres, crianças e adolescentes vítimas de violência - números que aumentaram durante o isolamento social.

Ausência de ação coordenada

Problemas anteriores à pandemia, como o desemprego estrutural, foram agravados pela calamidade pública. Uma situação que agrava a desigualdade social e aumenta a parcela da população em situação de vulnerabilidade. 

"Essas pessoas estão expostas a um vírus mortal; vêm, desde o berço, com dificuldade de acesso à alimentação, em meio a uma crise sanitária, econômica, política; e envolto em guerras (de facções) acontecendo dentro das favelas e comunidade. Para essa pobreza, que é multidimensional, não é (suficiente) só garantir renda, precisamos pensar o conjunto de uma proteção social".  
Leila Passos
Professora do curso de Serviço Social da Uece

Para isso, os pesquisadores apontam dois entraves: a falta de orçamento e a ausência de ação coordenada do Governo Federal. 

"O único plano do governo era retomar as atividades econômicas, para impedir a quebra da economia e do desemprego. Não foram tomadas medidas agressivas de proteção aos mais necessitados e vulneráveis. O próprio auxílio emergencial foi uma pressão do Poder Legislativo", argumenta o sociólogo Rogério Baptistini.

Ele afirma ainda que não parece haver interesse do Palácio do Planalto em adotar medidas que possam solucionar o problema a longo prazo. 

"(É preciso) Um projeto comum para enfrentar o problema do desemprego, da miséria e a tragédia da pandemia. O Brasil só vai sair disso com uma concertação, (mas) talvez estilo do presidente, que aposta no conflito, essa concertação não está no horizonte próximo". 
Rogério Baptistini
Sociólogo da Universidade Presbiteriana Mackenzie

Para Leila Passos, é necessário reverter o déficit nacional de recursos para políticas públicas de Assistência Social - cortes que começaram antes do período da pandemia. 

"Não se faz política pública sem recurso. O que existe (agora) é a tentativa de governos estaduais e municipais de realocar os recursos, mas não é suficiente. Para dar conta da demanda crescente, nós precisamos rever o orçamento público federal e garantir que possam chegar aos Estados e municípios para dar conta da proteção social", afirma a docente.

Entre as medidas a serem pensadas para enfrentar o aumento da fome no País, está a instituição de renda básica. "Quando falamos de renda básica, estamos pensando na garantia de direitos e de dignidade dessas famílias. Não é no limite da sobrevivência, mas permitir que elas sejam alcançadas por outras políticas públicas", conclui Passos.