Daqui a um ano, no dia dezesseis de novembro de dois mil e vinte e dois, o mundo comemorará o centenário de nascimento de José Saramago. Falar sobre este homem e sua obra é uma forma de agradecer por tudo que ele deixou ao mundo. É como se fôssemos todos os herdeiros de um tesouro inestimável, para cada um de nós, nossos filhos e netos. E esse tesouro é feito de palavras. Sobretudo de grandes perguntas.
E se acontecesse no mundo uma epidemia de cegueira branca e só uma mulher ficasse imune? E se a Península Ibérica se destacasse do continente e flutuasse à deriva? E se um elefante fizesse uma viagem lenta e profunda que transformasse as pessoas ao seu redor? E se um homem encontrasse um outro igual a si mesmo?
José Saramago esteve no mundo como um observador lúcido e inquieto.
E continua nele, nos inquietando, nos mostrando uma faceta da literatura que gera incômodo e condena a acomodação, que instiga uma nova percepção da linguagem, que ordena o silêncio ao redor para que a história seja ouvida e vista como se alguém a contasse com a voz.
Os olhos valem muito, mas não podem alcançar tudo – ele disse isso em seu livro “Viagem a Portugal”, enquanto andava pelo país e descrevia sua percepção do belo e do estranho. Nunca veremos na obra de Saramago uma mimese ilusória ou otimista. Ao contrário: precisamos estar preparados para o lado feio da existência e a literatura é um caminho para isso. Há algo dessa feiura que está em nós, também, tomamos parte sempre que cegamos. Ele nos ensinou a ver além.
Minha singela homenagem ao mestre português no seu aniversário foi ler sua obra poética, o livro “Os poemas possíveis”. São textos dos anos sessenta, apresentados pelo próprio autor como algo datado, porque toda escrita tem sua data natural.
Fazer poesia ruim é fácil, fazer grandes poemas é difícil. É preciso ter uma relação muito séria com a palavra e estes poemas de Saramago trazem a marca e a semente dos romances que viriam depois. Pelos temas Históricos, a bravura e queda dos reis que amam, as questões sobre Deus, o não-Deus e a fé.
A melhor parte do livro são os poemas apaixonados e elegantemente eróticos. “Estudo de nu”, por exemplo, começa com “essa linha que nasce nos teus ombros” para chegar a “caminho e selo da porta do teu corpo”, descrevendo o trajeto de um olhar sensual para a mulher com a beleza sublime que só grandes homens alcançam.
Guardo comigo uma folha da oliveira que caiu da árvore plantada onde repousam suas cinzas em frente à Casa dos Bicos, em Lisboa. É um amuleto da sorte. Meu amor por ele é tão grande que escolhi uma de suas frases e tatuei na pele, para sempre: sempre chegamos aonde nos esperam. É a epígrafe do livro “A viagem do elefante” e lá está escrito que foi retirada do “Livro dos Itinerários”, que procurei em vão.
No dia do meu aniversário, quando visitei a loja da Fundação José Saramago, em Lisboa, encontrei o livro à venda. Lá estavam eles: O livro dos itinerários, O livro das visões, O livro dos conselhos, as obras misteriosas de onde Saramago tirava as epígrafes e nunca encontrei em lugar algum. Fui até eles completamente extasiada e ao abrir, estavam em branco. Eram cadernos.
O vendedor, Guilherme, explicou o truque narrativo do mestre, que inventava os livros de onde tiraria as epígrafes. Os cadernos foram uma ideia da equipe da Fundação para que cada um escreva o seu próprio livro.
Mostrei a ele minha tatuagem, acompanhada de uma andorinha no traço legítimo de Bordallo Pinheiro e gravada na pele em um estúdio de tatuagem lá mesmo em Lisboa.
Dizem que José Saramago era um homem sério, mas acho que talvez ele achasse engraçado minha alegria logo desmentida pela sua graça em nos enganar. Um truque, uma surpresa, uma pequena mágica da literatura.
Que sorte a nossa por termos vivido no mesmo século que este homem que entendeu, como ninguém, a língua portuguesa. E que nos ensinou que o mundo é um lugar que devemos atravessar por amor, cuidar por justiça e onde nunca podemos estar de olhos fechados para os que atravessam conosco.