Foram três tentativas até conseguir conhecer João José Aves de Jesus. Este colunista só ia no horário errado: começo da tarde. Penintente não tira cochilo depois do almoço. Sai todo dia cedo da manhã e volta antes do entardecer, para rezar o terço.
A casa estreita e pintada de azul do bairro Tiradentes, em Juazeiro do Norte, no Ceará, estava com porta e janela abertas. Seu João esperava a visita.
"Eu olhava para o sol nascendo. E aí dava aquela vontade de sair. Mas lembrava que você disse que vinha [avisei à esposa dele nas duas vezes em que não o encontrei]. Afinal, compromisso é compromisso", disse.
Foi a primeira lição que ele me deu. A conversa com seu João envolve alguns comentários sábios, muitas referências bíblicas e falas míticas, difíceis de se entender. Tudo isso dito com poucas interrupções:
"Você veio para ouvir, não foi?", disse.
A fala que mais carece de compreensão envolve o ano de 2037. Nos cálculos dele, essa, realmente, é a data do fim do mundo.
"Se não se acabar, é porque Jesus faz e desfaz", ressalva seu João.
Prever o apocalipse é uma crença compartilhada pelo grupo de que ele fez parte. Na virada de 1999 para 2000, havia essa previsão entre os chamados Penitentes Peregrinos Públicos de Juazeiro do Norte.
Inclusive o Fantástico, da Rede Globo, enviou jornalista até aqui, ao Cariri, para acompanhar esse momento — reportagem histórica que foi relembrada no domingo (20), dentro da celebração dos 50 anos do programa.
Seu João afirma que houve um erro naquela data. E explica o cálculo, que tem a ver com a idade de Jesus Cristo. Confesso que entendi apenas que o fim do mundo foi adiado para 2037.
Mas um dos maiores especialistas em penitentes de Juazeiro do Norte também não entendeu.
"Antes, ele falava em 2025. Agora está em 2037", afirma o professor Roberto Viana de Oliveira Filho, que é diretor de patrimônio histórico da Secretaria de Cultura de Juazeiro do Norte, autor de dissertação sobre o tema.
Oliveira Filho diz que seu João é o último dos penitentes do bairro Tiradentes, de Juazeiro do Norte. O grupo foi criado na década de 1970 pelo romeiro José Aves de Jesus, que veio de Caruaru (PE), cumprindo um pedido que ele dizia ter sido feito pelo próprio Padre Cícero, surgido em revelação.
A comunidade, que teria chegado a cerca de 100 membros, está quase extinta. Os mais velhos morreram. Os mais jovens desistiram por causa da rigidez. Ficou seu João, o único remanescente da formação original.
"O principal motivo da divisão entre eles é que o seu João defendia que o livro 'Missão Abreviada' deveria ser lido por todos. Já o fundador afirmava que apenas os membros do grupo deveriam ler", explica o professor.
A 'Missão Abreviada' é um livro do século XIX escrito por um padre português com o objetivo de abordar a importância da pregação itinerante.
Catolicismo popular
Durante o período de maior rigidez social entre os membros, havia atos que precisavam ser praticados como forma de penitência, para expressar a "morte para as coisas do mundo".
Os penitentes não tinham emprego formal, não tinham carteira de identidade e tinham que viver da mendicância. Além disso, homens e mulheres chamavam-se de Josés e Marias Aves de Jesus. O termo "ave" vem da própria saudação da oração "Ave Maria".
O professor explica que existe uma identidade penitente que pode ser vista em outras comunidades nordestinas.
"A penitência é um sacramento católico. A identidade penitente você encontra em várias partes do Nordeste. Em Santa Brígida, na Bahia, existem os penitentes de São Gonçalo, que têm como penitência a dança votiva. Aqui em Barbalha, existem os penitentes das Cabeceiras, que fazem o autoflagelo", explica o professor.
Para eles, a missão maior é caminhar para pregar o evangelho.
"O primeiro penitente foi Jesus Cristo. E Ele fez em Pedro outro penitente", afirma seu João.
Mesmo sozinho, seu João segue pelas ruas do Cariri, com sua veste e bandeirola nas cores em homenagem ao manto de Maria.
"Pregar a todas as criaturas, do nascente ao poente, do sul ao norte", diz o último penitente da terra do Padre Cícero.