Abancada a uma mesinha coberta de velas brancas para vender, encontro dona Graça Veras, com seus olhos azuis e o cabelo cortado estilo mullet, que foi tendência absoluta na década de 1980. Gracinha é de uma família que vive entorno da Capela e do Cemitério do Socorro, o campo-santo mais antigo de Juazeiro do Norte.
Além de vender as velas, Graça também cuida de túmulos. Presta o serviço de limpeza e jardinagem de jazigos para famílias que só têm tempo de ir ao cemitério no dia 2 de novembro. O ofício também é conhecido como aguar cova.
Quem não tem dinheiro para mandar instalar lápide costuma pagar para que o espaço onde está sepultado o parente fique coberto por flores. É o chamado carneirinho. Mas, para que as plantas suportem o clima do semiárido, é preciso que sejam regadas com frequência. Diz-se, então, que fulana "agoa" cova, na conjugação sertaneja que explica muito bem o trabalho da pessoa que água a sepultura em troca de dinheiro.
Graça aprendeu o ofício com a mãe, dona Albertina. A irmã Das Dores também aguava cova. Ambas já morreram. E hoje têm as suas covas aguadas. Mas, além da vocação para cuidar de cemitérios, a família tem outro hábito em comum e que se perpetua nas gerações: a devoção à beata Maria de Araújo.
Maria Magdalena do Espírito Santo de Araújo é uma das religiosas que habitaram Juazeiro do Norte entre o séculos 19 e 20. Ainda há algumas pela cidade. Mas só a beata Maria de Araújo foi considerada santa.
"Foi não. Ela é! [santa]", diz Gracinha, sempre firme.
Em 1889, a beata recebeu das mãos do Padre Cícero a hóstia que teria se transformado em sangue na boca dela. O fenômeno se repetiu. As romarias começaram: o povo queria ver o que era aquilo. Virou notícia. Tentaram abafar.
Um padre francês chegou a dizer que Jesus Cristo nunca deixaria a Europa para fazer um milagre no Brasil. A beata era negra, analfabeta, pobre. Fazia apenas um ano da Lei Áurea. Viva, a beata foi condenada ao silêncio. Morta, teve o túmulo violado.
Os restos mortais tiveram destino desconhecido. Mas a beata venceu o esquecimento. Historiadores, intelectuais, artistas têm lembrado a mulher sem túmulo cuja santidade é dada como certa. E 2022 marca o encontro entre ela e o parceiro de milagres.
São 150 anos da primeira vez em que o jovem padre Cícero Romão Batista, chegado à então Vila do Juazeiro, teria encontrado aquela menina que já apresentava talento para coisas de espírito.
"[...] desde a idade de oito a dez anos, quando a confessei para fazer ela sua primeira comunhão. Notando eu então as melhores disposições daquela menina para a vida interior, aconselhei-a a se consagrar a Nosso Senhor; o que ela executou do modo o mais íntimo e perfeito, considerando-se desde aquela data como uma verdadeira esposa de Jesus Cristo", escreveu o Padim em documento apresentado pela historiadora Fátima Pinho.
Para ela, a espiritualidade precoce da beata pode ter sido um dos motivos de o Padim trocar o Crato pelo Juazeiro.
A beata persiste, apesar de não ter cova para Gracinha aguar.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.