Há 82 anos cearenses viajaram de barco até o RJ em busca de direitos trabalhistas

O dia internacional dos trabalhadores nos fez refletir e relembrar das lutas e tragédias cotidianas que, mesmo no “feriado” de maio, permanecem apagados.

Já sentiu dor de dente? Daquelas excruciantes que tiram o juízo? Uma dentista me disse uma vez que é como ter um coração aberto pulsando na boca. Só entende quem já passou por isso. Quem sentiu lembre, quem nunca, imagine. O jovem Damiano Cacciolito, criança em idade escolar, trabalhava numa têxtil, estava com dor de dente, sem conseguir trabalhar de tanta dor se recostou em um canto do pátio. O capataz ameaçou soltar os cães, o dono da fábrica autorizou a soltura.

Damiano acordou em meio ao ataque, a dor de dente acabou, Damiano acabou. Era uma criança a menos dificultando o andamento da produção. Era 1920, o Brasil se modernizava e assim como o modelo europeu, as oficinas eram insalubres, a jornada de trabalho em torno das 14 horas, sem descanso remunerado. Era ruim para qualquer trabalhador, mas mulheres e crianças sofriam ainda mais e ganhavam ainda menos. Mas os sinos não dobraram por Damiano.

A brutal história nos fez pensar no dia dos trabalhadores, nas lutas e tragédias cotidianas que mesmo no “feriado” de maio permanecem apagados. A história do pequeno é uma das tragédias das lutas operárias que envolveram as greves gerais das primeiras décadas do século XX. A greve intensificou o operariado paulista à frente das lutas nacionais, mas, o nosso Ceará tem muita história pra contar nas  tramas  do mundo do trabalho.

É em tempos de autoritarismo que a coragem dos que lutam se torna mais inspiradora. Peguemos então dois casos de cearenses que lutaram em meio a duas ditaduras do século passado. Em 1941, no Estado Novo Varguista, quatro pescadores - Manoel Jacaré, Jerônimo, Manoel Preto e Tatá – protagonizaram uma épica jornada: saíram do Ceará rumo ao Rio de Janeiro, em uma jangada, sem instrumentos de navegação, apenas com as estrelas de direção e os ventos como motor. 

A viajem era o auge de um projeto. Jacaré, líder da colônia de Pesca Z-1, da Praia de Iracema, Fortaleza, decidiu ir até a Capital Federal “para falar com o presidente pra ajudar toda essa gente que só faz sofrer”. Iria pedir a Vargas para incluir os jangadeiros nos recém-conquistados direitos trabalhistas. O primeiro passo? Estudar, aprender a ler e escrever em aulas noturnas, registrar as reivindicações e partir rumo à capital.

Tatá, o mais antigo da comunidade pesqueira, agrega outros companheiros à jornada. Letrados, os pescadores criam e acionam uma rede de apoio e contatos em Fortaleza, jornalistas e autoridades civis e religiosas que dão visibilidade à viagem. De costado em costado, vão de nossas praias ao Rio de Janeiro e lá são recebidos como heróis.

Vargas os acolhe, eles saem do Palácio do Catete como propagandas do trabalhismo e cheios de promessas. Compromissos não cumpridos que alimentaram novas lutas e novas viagens. Eles seguiram na batalha, não falavam apenas por si. Quando voltaram à terra natal sabiam que representavam uma coletividade.

Saídos do Mucuripe em nome dos cearenses chegaram a Vargas em nome do “Norte”. Seu plano de amparo, regulamentação e sindicalização da pesca abrangia trabalhadores do mar do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas. A história dos jangadeiros ganhou o mundo, o maior diretor de Hollywood, Orson Welles, um Steven Spielberg de seu tempo, não acreditou na história que ele ouvia no rádio...

Veio ao Ceará, quis contar a épica história, e Manoel Jacaré aceitou interpretar a si mesmo. Nas gravações o líder do movimento morreu, afogado nas águas da Guanabara, em um último esforço de propagar sua luta e atingir os objetivos de sua gente... Em novembro de 1968, quando a ditadura civil-militar se preparava para arreganhar seus dentes mais raivosos, a extração industrial de óleo da castanha de caju impulsionava a rede industrial cearense.

As tantas lutas

Caciollito dilacerado, sozinho, em sua dor, os quatro jangadeiros e suas duras viagens, Jacaré morto ante as ondas, do mar e das promessas governamentais não cumpridas. Esses casos são exemplos muito significativos das muitas lutas, das duras jornadas e das muitas tragédias que permeiam cada pequena conquista que os trabalhadores obtiveram em nossa frágil democracia.

Seus casos mostram que do individual ao coletivo essas lutas – algo de tragédias gregas, algo de Jornada do Herói** – são retratos agridoces do Brasil trabalhador. Mas, será que são retratos do passado? Crianças mortas nas portas de Fast Foods ou supermercados por seguranças não serão novos Cacciolitos?

O esforço “dos mercados” em transformar trabalhadores em empreendedores de si mesmos não ocultará novos jangadeiros em frágeis jangadas de duas rodas? Não será a pesca, atividade semi-autônoma, dessas que não possuem vínculo empregatício ou responsabilidade social por parte dos “semi-patrões” um antepassado de “ubers” e “ifoods” em suas ilusórias liberdades?

As mulheres não precisam mais combater a desigualdade salarial e os muitos tipos de assédios no trabalho? Tudo me parece atual demais, presente demais, permanente demais. Apenas novos nomes para velhos corres. 

Amanhã, o dia seguinte ao feriado do dia internacional dos trabalhadores, é como todo dia seguinte às datas que aparecem nos livros de história: apenas mais um dia de luta após a pretensa festa. É sempre bom lembrar, em Maio e além, após o dia 1, as lutas continuam no dia 2.


** A Jornada do Herói ou “monomito” foi proposta por Joseph Campbell no livro “O Herói de Mil Faces” de 1949 e explica como as etapas do herói que parte em uma jornada e volta como uma pessoa mudada. O monomito explica o caminho épico dos heróis como Luke Skywalker, Frodo, Woody e Harry Potter entre outros, assim como dos quatro jangadeiros do Ceará.

 

“Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor”. 

P.A. Damasceno é professor, historiador e mestre em Ensino de História.