Recentemente tivemos uma grande quantidade de notícias sobre reformas e requalificações da orla fortalezense. Da reabertura do calçadão da Beira-mar à construção de mega prédios na via costeira da cidade – Meu querido Alexandre Pereira, grande geógrafo, professor e também colunista deste Diário do Nordeste, escreveu imperdível texto sobre mitos e pretensas vantagens dessas obras megalomaníacas – Da concessão dos espigões da avenida costeira à grupos privados à construção de um corredor gastronômico na região.
Fico feliz com mudanças e torço por um acesso pleno, seguro e democrático da população à região, mas, sempre me preocupo com qual cidade estamos construindo.
Com tantas mega-obras e giga-transformações na ocupação, uso e serviço da orla, voltei meu pensamento à pequenez arquitetônica e o gigantismo histórico-social da Capela de São Pedro dos Pescadores. Hoje apertado entre concreto e asfalto, o prosaico templo é relevante testemunha-personagem da nossa história.
Ainda no século 18 – quando o Mucuripe era um povoamento distante da “capital” que ficava ao redor do forte – uma pequena cabana dedicada à Nossa Senhora da Saúde agradecia o controle “milagroso” de um surto de peste bubônica na vila de pescadores. O primeiro casebre foi engolido pelas dunas e reconstruído em 1852 no lugar atual, de frente para a enseada.
Fortaleza crescia de costas para a praia, o lugarejo de poucos barracos de palha na beira do mar abrigava famílias de pescadores, prostitutas e marginalizados. As areias no entorno da igreja passaram então a ser o lugar do encontro religioso e mundano da comunidade.
Em 1930 começa uma disputa entre a hierarquia tradicional do catolicismo e a espiritualidade comunitária e popular da marginália praiana. O Bispo D. Manuel interdita a capela e muda, em 1932, a igreja para o alto da duna da Volta da Jurema, onde hoje está a atual Paróquia de Nossa Senhora da Saúde. O prédio velho, no entanto, resistiu e se reorganizou demarcando a disputa entre igreja-instituição e igreja-comunidade.
O protagonismo resistente daquele grupo levou à reabertura do templo em 1937, agora como Igreja de São Pedro dos Pescadores, orientada pelo Pe. Francisco Pinheiro Landim. A vitória prova o sentido de pertença e de coesão comunitária, de luta pelo seu modo de viver a fé e a cidade.
Essa centralidade do prédio foi registrada nas telas quando em 1941, Orson Welles, vem ao Ceará filmar a saga dos jangadeiros – tema que já tratamos aqui na coluna. A igrejinha e seu entorno são as principais locações da gravação, esse cenário/personagem se reafirmou como edificação do sagrado e do profano na sociabilidade à beira do mar.
Até meados de 1950, o Mucuripe se manteve como comunidade de pescadores, pobre e semi-isolada. Aí inicia-se um rápido e voraz processo de urbanização e especulação imobiliária da região. A construção da Avenida Beira-mar gerou um processo violento de remoção dos pobres e indesejados do lugar que já se projetava como futuro habitacional da cidade. Nesse contexto a centralidade da igreja na organização da comunidade se acentua.
Na obra “Mucuripe: De Pinzón ao Padre Nilson” o grande Blanchard Girão registra como em maio de 1950 o Padre José Nilson de Oliveira Lima chega a comunidade em meio as remodelações urbanas que afetavam profundamente os paroquianos: pescadores, estivadores e “mulheres da vida”. Os poderes políticos e econômicos queriam simplesmente remover aquela comunidade.
O pároco passa a mediar as questões sociais e habitacionais do bairro, exige indenizações e proteção aos afetados pelas obras, articula interesses e protege os fragilizados, as prostitutas e luta por melhoria das condições de vida e educação dos jangadeiros e seus filhos. Com Padre Nilson a igreja dos pescadores reafirmou seu papel apostólico de proteção dos pequenos, atuando como resistência social e material ao capital especulativo até o século XXI.
Em 2007 a Capela de São Pedro dos Pescadores escapou de ser demolida. O prédio passou da Arquidiocese à União e iria cair ante a sanha dos mercados. Novamente, manifestações dos pescadores, dos antigos moradores e da comunidade paroquiana mantiveram não apenas a igreja de pé como conquistaram o reconhecimento patrimonial da igreja e suas manifestações.
Após anos de luta e mobilização, em 2012, a Festa de São Pedro dos Pescadores foi reconhecida como patrimônio imaterial de Fortaleza, o primeiro do tipo na cidade, e registrada no Livro das Celebrações. A Igrejinha e seu entorno foram tombados no Livro dos Lugares pelo Conselho Municipal de Proteção ao Patrimônio Histórico-Cultural por “sua importância cultural para a cidade [...] haja vista o seu alto valor simbólico, portador de inelutável referência à identidade e à memória da sociedade fortalezense.”
A capela vem resistindo como um importante lugar de memória e de luta. Uma herança, uma identidade, uma tradição para além da religiosidade, integrando expressões no imaterial e material da cidade. É parte da memória-história de nossas gentes. A Igreja de São Pedro do Pescadores é a resistência material do intocável: a fé, as crenças, as tradições e a história. No inevitável embate entre os grandes e os pequeninos, a igrejinha entre mega prédios é símbolo privilegiado do traçado afetivo de uma cidade que resiste em meio às permanentes transformações.