Simulador de escravidão: os perigos da outremização

Por meio de racionalizações infundadas, os racistas desumanizam, despersonalizam o corpo negro

Em uma semana de intensos debates sobre racismo após mais um triste episódio vivenciado pelo jogador Vini Jr, veio à tona que, durante mais de um mês, ficou disponível na loja de aplicativos do Google um jogo chamado “Simulador de escravidão”, por meio do qual os usuários poderiam exercer seu racismo recreativo.

O aplicativo declarava possuir “fins de entretenimento”, um divertimento que se baseava em simular compra e venda de negros escravizados, sendo possível gerenciar suas vidas, “treiná-los”, evitar fugas e infligir castigos.

O jogo foi baixado mais de mil vezes antes do Google retirá-lo do ar com uma pífia nota declarando não permitir “apps que promovam violência ou incitem ódio contra indivíduos ou grupos com base em raça ou origem étnica (...)”.

Apesar de não estar mais disponível, alguns veículos de comunicação compartilharam alguns comentários e avaliações feitas por usuários, como, por exemplo: “Ótimo jogo para passar o tempo. Mas acho que faltava mais opções de tortura. Poderiam instalar a opção de açoitar o escravo também. Mas fora isso, o jogo é perfeito!”.

O racismo é diário em nosso país, herança maldita de um tempo em que as pessoas negras eram – com a autorização da lei – subjugadas, escravizadas.

Ainda que a escravidão tenha sido oficialmente abolida há mais de 130 anos em nosso país, e, desde então, tenham sido implementadas legislações que proíbem e criminalizam a discriminação contra os negros, este cenário de práticas racistas persiste de modo odiento, está no nosso cotidiano – em plena luz do dia. Não só no Brasil, diga-se de passagem.

Curiosamente, as pessoas racistas não se enxergam como pessoas ruins. Elas resistem em olhar para a própria crueldade e estabelecem uma distinção supostamente natural e divina entre elas e as pessoas negras.

Por meio de racionalizações infundadas, os racistas desumanizam, despersonalizam o corpo negro, não enxergando-o como seu semelhante, mas como um “outro”, um dessemelhante, um não-igual.

Segundo a escritora e nobelista negra Toni Morrison, historicamente fizeram do negro um outro, tendo sido arquitetado, ao longo do tempo, um trabalho psicológico e de narrativa para legitimar a suposta distinção natural entre escravizador e escravizado.

A Igreja Católica teve um papel fundamental na implantação dessa disrupção ilógica do ethos de Cristo: o Papa Nicolau V, tão logo veio à tona o “descobrimento” das Américas, autorizou a escravidão de “pagãos”, sob a justificativa de que para eles não se aplicavam os evangelhos.

Convencidos dessa diferenciação, o trato diferente e cruel contra o negro escravizado era justificado, uma vez que ele não seria um semelhante, mas um “ser outro”, quase de outra espécie. A esse fenômeno, Toni Morrison chama de “outremização”.

Pela outremização dos negros, por exemplo, a escravidão seria inteiramente justificável e possível até em termos cristãos: afinal, se o negro não seria meu próximo, mas um outro de categoria diversa, os evangelhos não o incluiriam, Jesus não estaria falando dele ao afirmar "quem é salvo ama seu próximo". Obviamente, é um ilogismo absurdo e tétrico.

Infelizmente, nos tristes capítulos de nossa história, até mesmo a ciência foi utilizada para justificar tal diferenciação. No século XIX, a Teoria da Evolução de Darwin foi maliciosamente utilizada por teorias evolucionistas pseudocientíficas para justificar uma suposta diferenciação entre raças, alegando que algumas raças eram superiores a outras em quesitos de evolução da espécie humana.

A ciência acrítica de outrora tecia diagnósticos próprios para negros escravizados, como, por exemplo, a “drapetomania” – uma doença que fazia com que os escravizados tivessem vontade de fugir e vaguear, e a “disestesia etiópica” – uma espécie de letargia mental dos escravizados, de preguiça, que dificultava o entendimento que eles eram propriedade dos patrões e tinham que trabalhar.

A outremização dos negros passou, assim, a ser validada por uma ciência nefasta e arcaica que, obviamente, já foi comprovadamente descartada por inúmeros estudos, que já atestaram, reiteradas vezes, não haver quaisquer diferenças genéticas significativas entre negros e brancos.

Infelizmente, nesta semana pudemos constatar que a outremização do negro continua em voga. Para além da perversidade e da estupidez dos racistas – sejam em jogos de futebol ou eletrônicos – há um elemento fundante que precede o absurdo: eles não enxergam, naquele que é ofendido, um semelhante, um igual – apenas se vê um “outro”, um constructo imaginário e medieval que reina nas mentes impensantes.

Não compactuar com qualquer discurso, seja ele em forma de ciência, piada ou jogo, que promova a outremização, talvez, seja o início de um longo caminho de reparação histórica.

*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora