A experiência de ser mulher, em uma sociedade ainda longe de atingir um patamar aceitável em termos de igualdade de gênero, é repleta de dissabores. E, dentre os inúmeros aspectos que representam esse incômodo, a violência sexual ainda ocupa lugar de destaque.
Se revela como um medo rotineiro de andarmos nas ruas, irmos a festas, bares, enfim, em transitarmos em espaços públicos e privados. Estupros, importunações sexuais, violência verbal e física contra mulheres são resquícios odientos de tempos bárbaros, uma bestialidade irracional, que ainda fazem parte da realidade da experiência feminina.
Na mídia, cada vez mais, temos visto muitos homens “poderosos”, digo, aqueles que têm dinheiro, fama, ou qualquer insígnia social que os façam alguém de destaque, envolvidos em casos de violência sexual contra mulheres.
Parece que o poder (ou o sentimento de poder) implanta, em alguns, a certeza de que são totalmente impunes. Tal como o personagem Raskólnikov, do romance Crime e Castigo, esses “homens extraordinários”, acreditam estar acima da lei, aos quais é permitido cometer crimes sem castigo, atrocidades sem culpa. E, lamentavelmente, muitos abusadores “poderosos”, de fato, saem impunes.
Casos reais se multiplicam, como o do milionário jogador Robinho, condenado na Itália a 9 anos de prisão por violência sexual contra uma mulher em uma boate de Milão. Robinho fugiu para o Brasil e, até agora, esse “homem extraordinário”, que se diz de fé, temente a Deus e defensor da família, está impune.
Diante de todo esse contexto, confesso que, enquanto mulher, senti um certo júbilo, um gostinho, um prazer, quando acordei nesta manhã e vi a notícia de que Daniel Alves, jogador milionário, foi condenado a 4 anos e meio de prisão, em regime fechado, e a pagar 150 mil euros, por violência sexual cometida contra uma jovem em um banheiro de uma boate na Espanha.
Os detalhes do estupro são aterradores, foram confirmados por testemunhas, exames e perícias técnicas, câmeras de circuito interno, e confessados pelo próprio jogador. Daniel Alves parecia ter tanta certeza da sua impunidade que, ao receber a intimação para depor, estava nos Estados Unidos, longe das garras da justiça espanhola, e, mesmo assim, pegou um avião e foi à Espanha, estando convicto de que uma prisão seria algo impensável, ainda que, houvesse cometido uma violência sexual.
É claro que a pena poderia ser maior (afinal, ele recebeu quase a pena mínima prevista na lei espanhola para casos de estupro) e, certamente, também a multa poderia ser mais elevada (convenhamos, para um jogador que recebia cifras salariais em milhões de euros e ainda tem amigos, como o “menino” Neymar, dispostos a pagar parte da quantia condenatória, 150 mil euros não parece ser uma multa tão alta).
Sei, também, que a vítima teve que fazer várias concessões para que fosse levada a sério: permaneceu no anonimato – afinal, se aparecesse na mídia é porque “queria fama”; teve que sofrer exposição pública por postagem não-autorizada da mãe do Daniel Alves, que revelou sua identidade na esperança de que essa mulher fosse estigmatizada e “cancelada” nas redes sociais; teve, ainda, no início do processo, que afirmar que não queria indenização – afinal, embora fosse justíssima uma indenização nesse caso, poderia ser taxada de “interesseira”, de querer enriquecer indevidamente.
Por mais que eu tenha consciência de todos esses detalhes, ainda assim meu “espírito” regozijou-se ao ler essa notícia pela manhã. Busquei um mergulho interior para analisar esse prazer. Seria mesquinho? Seria um prazer vingativo? Seria vil eu sentir prazer diante do encarceramento de um ser humano? Não. Chego à conclusão de que não é um prazer maldoso, não é um prazer cuja gênese é um ressentimento ou ódio interno nutrido contra a genérica classe “Os homens”. Pelo contrário, é um prazer cuja genealogia está no sentimento de que a justiça foi feita.
É um prazer que vem da constatação de que, em um oceano de impunidades, pelo menos um desses “homens extraordinários” que se permitem romper os limites da lei e da moralidade para estuprar mulheres em banheiros coletivos, recebeu uma punição restritiva de sua liberdade. Nós, mulheres, temos nossa liberdade restrita diariamente: não há lugar 100% seguro para nós.
Talvez, isso possa servir de exemplo. Talvez, se mais Daniéis e Robinhos forem, de fato, punidos, a prática de violência sexual contra as mulheres possa enfim ocupar o lugar que lhe pertence: o de lixo da história.
*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora