No fim da década de 1960, jovens universitários alçavam seus primeiros voos na carreira artística. Começaram em apresentações amadoras nos centros acadêmicos e nas mesas de bares, depois esses locais ficaram pequenos diante tanto talento. O “Eixo Rio-São Paulo” era o pódio mais certeiro, mesmo que para alcança-lo a corrida tenha sido árdua.
Chegando lá, ainda que tenham estilos diferentes de composições, foram categorizados como um grupo que carregava o nome do seu estado. Essa classificação permitiu que em 1973, Ednardo, Rodger Rogério e Teti, lançassem o disco inaugural da agremiação “Pessoal do Ceará - meu corpo, minha embalagem, todo gasto da viagem”.
Desde então passaram quase cinco décadas de forma oficial, mas na verdade a comemoração das bodas de ouro com a carreira acontece em 2022 para eles, afinal o longplay foi gravado um ano antes do lançamento.
Para não deixar dúvidas do tempo percorrido de muita luta, poesia e canção, o aniversariante deste domingo, o ilustre compositor e cantor cearense Ednardo, estreia álbum resgatando gravações do ano de 1972 no qual interpreta suas músicas e de parceiros. “Sarau Vox 72” registra a última apresentação do artista entre amigos antes de ir tentar carreira no Sudeste.
Em uma espécie de Sarau na antiga loja de discos “Vox”, Ednardo entoou cantos que logo ganharam o olhar atento do público. Agora nas plataformas digitais e com lançamento da forma física marcado para o próximo dia 30 de Abril, nosso eterno Pavão Mysteriozo desafia o tempo e mostra que tem muito de fênix ao saber o momento de renascer para se imortalizar.
Sarau Vox 72
Quando citei a palavra resgate, é porque penso que seja a mais adequada diante desse novo trabalho de Ednardo. Não somente pela história das fitas preservadas por tanto tempo e sim pela proposta que ele carrega. São vários momentos em que o admirador da música cearense pode reviver o tempo da delicadeza, onde a criatividade, poesia e sons não se limitavam a modismos tecnológicos.
Um dos primeiros fatos que me faz pensar assim é a mixagem do material. Como ele foi gravado de forma quase que amadora, por certos momentos o violão parece mais alto do que a voz do cantor. Para muitos isso pode parecer estranho mas não é, muito pelo contrário só reforça a relíquia que agora temos acesso.
Outro ponto que achei interessantíssimo e preciso mencionar antes mesmo de entrar na seara das músicas, é o gostoso “chiado” das faixas mesmo as escutando por meio das plataformas de streams. Dessa forma, não sei se intencional ou não, o trabalho fonográfico nos leva para o pé de uma vitrola e nos faz sentir até gostinho de quem aprecia os antigos “bolachões”.
Mesmo quando se fala que a crítica deve ser isenta de afeições, é difícil como fã de Ednardo falar qualquer coisa sobre o “Sarau Vox 72”, porém justifico cada um de meus elogios a começar pela ideia do álbum e as 17 faixas que cantam muito da nossa história e de onde tudo começou.
A abertura do trabalho é com a forte “Ausência” que tem letra e música do próprio artista. A composição, está no disco célebre “Romance do Pavão Mysteriozo” de 1974, que viria a ganhar notoriedade somente em 1976 quando seu tema principal marcou a trilha da novela “Saramandaia” da TV Globo.
Também integram o álbum a provocante “Varal” (Ednardo e Tânia Cabral) e “Mais Um Frevinho Danado”. A primeira carrega a inquietação melancólica de tempos de desesperança, já a segunda mescla o frevo com a marcha carnavalesca, ambas erguendo uma nostalgia de um tempo de romantismo de versos, independentes se tristes ou alegres.
As gravações também revelam interpretações tocantes de obras do nosso eterno rapaz latino americano. “Bip bip” é uma das interpretações que Ednardo fez com Belchior mas se tornou inédita para o grande público. Essa faz parte de uma lista de canções do fortalezense que foram censuradas pelo Regime Militar de 1964 como às "Momentos", “Além Muito Além” e “De areia e vento” também presente no álbum. Esta última também é uma parceria da artista com Tânia Cabral.
Ainda voltando para a relação do novo trabalho com Belchior, Ednardo interpreta lindamente “Mucuripe” (Belchior e Raimundo Fagner) e “Hora do Almoço”(Belchior). Outra gravada pelo artista e essa chamou atenção é “Paralelas” (Belchior), onde nosso Pavão Mysteriozo canta ainda a primeira versão da letra nos versos de início “No karmann ghia, pelo trevo, a cem por hora”.
Na primeira versão conhecida oficialmente e interpretada pela cantora Vanusa, os versos já haviam sido modificados para “dentro do carro, pelo trevo, a cem por hora”. A mudança, segundo a cantora Lúcia Menezes, aconteceu pois Belchior não queria temporalizar a canção colocando o nome da marca de um veículo.
Essa viagem que o “Sarau Vox 72” causa é mágico, exemplo disso é o pré-anúncio de faixas que em 1973 integrariam o já mencionado “Pessoal do Ceará - Meu corpo, minha embalagem, todo gasto da viagem”. São de parceiros a empolgante “Cavalo Ferro” (Fagner e Ricardo Bezerra) e a delicada “Curta Metragem” (Rodger Rogério e Dedé Evangelista).
Outra que participou dos dois trabalhos, essa de autoria de Ednardo e que merece ter a história contada é a linda "Beira-Mar". Na verdade, a canção foi feita (ou pelo menos finalizada) nas mesas do Bar do Anísio, no Mucuripe, e foi feita em tom de declaração para uma namorada que exigia muita atenção dele pois o jovem estudava e trabalhava muito.
Faixas que também comovem são as “Desembarque”, “Tranquilamente” e “Agarradinho”, todas essas seguem a tendência de estudantes que ganhariam notoriedade nacional em pouco tempo. Elas fazem jús ao hino “Carneiro” de Ednardo e Augusto Pontes, um dos grande formadores do “Pessoal do Ceará”, quanto esta diz que “se amanhã der carneiro, vou mi’mbora daqui pro Rio de Janeiro” e assim aconteceu há cinquenta anos.
O sopro “Terral”
Navegar pelo “Sarau Vox 72” é entender um pouco sobre o surgimento do principal grupo musical cearense de todos os tempos que foi “Pessoal do Ceará”, base inclusive para outros momentos importantes da história do nosso cancioneiro popular como “Massafeira Livre”.
Tornar público essas gravações da década de 1970 só engrandece a nossa história e nos revela um Ednardo que segue inquieto em todos os tempos. Ressaltar a genialidade do artista pode parecer comum nas minhas linhas, mas é incrível adentrar na força que ele carrega seja em composições ou ideias.
Hoje aquele menino da Arthur Timóteo, que trocou o piano pelo violão e encantou gerações, completa 77 anos. Além do desejo de muita saúde física e inquietude da mente, para que continue sendo nosso poeta que necessitamos tão bem, torço para que “Sarau Vox 72” seja bastante reproduzido, pois o registro é histórico e fala muito desta cidade que na semana passada completou 296 anos.
Parabéns, Ednardo! Parabéns, Fortaleza! Parabéns à nós, seus fãs que seguimos o aplaudindo desde as puras dunas brancas até as antenas apontadas para o futuro. Outro compositor já afirmou que “regressar é reunir dois lados” e com nosso Ednardo entendemos que a vida é um sopro fino feito a brisa terral e a preservação do ontem é saber construir um amanhã melhor.