A Fortaleza que resiste nos versos de Ednardo

Em meio a desabamentos e demolições, as memórias da capital cearense não podem se perder e merecem respeito

A última semana não foi fácil para a história e cultura de Fortaleza. Há oito dias foi demolido o Sobrado dos Gondim, centenário prédio do Centro da Capital. Derrubar as paredes, salas, balcões e portais do velho palacete é também ignorar uma recordação tão importante da cidade e que jamais poderia morrer.

Dias depois, me deparo com a notícia do desabamento da cúpula central do antigo Farol do Mucuripe após anos de abandono e descaso. A notícia dói pois vamos nos perdendo diante a imensidão tempo e o esnobar do moderno, que parece ignorar a própria trajetória.

Mesmo que inúmeros fatores deixem apagar nossas lembranças, a música jamais permitirá que isso aconteça. O Farol Velho, como costuma ser chamado, sempre viverá no hino cearense “Terral” do nosso poeta Ednardo, e continuará sendo um dos olhos do mar. Aliás, em uma de suas redes sociais, o artista expôs indignado a situação deste importante local de Fortaleza.

O cantor tem muitos motivos para se revoltar, ele é um dos principais defensores da essência da nossa cultura. O mais fortalezense de todos os integrantes do “Pessoal do Ceará”, Ednardo fez das suas letras e melodias resgates de uma Capital linda, sensível, poética e paradisíaca.

Do boi só se perde o “Berro”

Em 1976, após sucesso consolidado no Sudeste do país, Ednardo lançou um dos principais álbuns da história do Ceará. "Berro" é uma obra prima e fala de Fortaleza do início ao fim, canções que imortalizam uma cidade em movimento, cheia de causos para contar.

Já que estamos falando de espaços arquitetônicos da cidade, devo começar pela minha preferida, “Longarinas”, a música faz uma analogia linda e questiona o que é progresso. “O mar engolindo o lindo e o mal engolindo rindo” é atualíssima e coloca em xeque ideias preconcebidas. 

Só a Ponte Velha e o compositor teimam resistindo ao capitalismo, industrialização e tecnologia. A noiva do Sol, tão linda Praia de Iracema, assiste desconfiada seus casarões sendo demolidos para a construção de empreendimentos. Até a tradicional jangada de vela mudou, lá se vai embora a “Forte praia, minha cidade”.

Duas faixas do disco se entrelaçam para contar a história de uma das mais importantes agremiações intelectuais do Brasil, a eterna “Padaria Espiritual”. Para quem não sabe, o grupo foi formado em 1892 e tinha como ponto de encontro o Café Java, na Praça do Ferreira. Dentre os integrantes estão Antônio Sales, Ulisses Bezerra, Adolfo Caminha, Rodolfo Teófilo e outros.

Eles produziam uma espécie de jornal chamado “O Pão”, onde expunham seus pensamentos baseados nos ideais iluministas. Captando essa essência, uma das composições do disco recebe o próprio nome do grupo de pensadores (Padaria Espiritual). Os versos Ednardo exaltam aquele pão de espírito, inquieto de tantas novas e revolucionárias utopias.

Em “Artigo 26”, a “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” clamada na Revolução Francesa é reproduzida pelo padeiro(nome dado aos participantes da agremiação) que entregava nas casas o pão (jornal) que deveria alimentar as pessoas de novos olhares diante o mundo.

Ednardo é genial e comprova isso em cada palavra de seus versos. Ainda no “Berro”(1976), ele lança uma das canções mais emblemáticas de sua carreira. A chamada “Passeio Público” conta a história da revolucionária Bárbara de Alencar, heroína republicana.

Para explicar melhor a profundidade da letra é preciso falar que a Avó de José de Alencar participou de dois dos mais importantes movimentos opositores do sistema monárquico vigente no Brasil: a Revolução Pernambucana e a Confederação do Equador. Com a derrota da primeira, em 1817, a pernambucana teve os bens confiscados, foi presa e torturada no Forte Nossa Senhora da Assunção. Mesmo que historiadores contestem o local da prisão da revolucionária, até hoje na Junta Militar tem o memorial de sua cela.

Diante o cenário que mescla o antigo Fortim que foi calabouço da Bárbara de Alencar, há também outros elementos que remetem a cidade, como o Baobá da Praça dos Mártires, local conhecido como Passeio Público (o nome é em homenagem aos republicanos da Confederação do Equador, mortos no local em 1825). Nosso “Pavão Mysteriozo” escreve versos que rememoram às duras torturas por quem lutou por liberdade.

“Hoje ao passar pelos lados/Das brancas paredes, paredes do forte/Escuto ganidos de morte/Vindos daquela janela/É Bárbara, tenho certeza/É Bárbara, sei que é ela/ Que de dentro da Fortaleza”
Ednardo
Compositor e Cantor

O compositor menciona ainda os irmãos e filhos da revolucionária também presos pelos monarquistas devido aos ideais republicanos. Ele completa a letra fazendo menção aos heróis mortos na Revolução do Equador, fuzilados no Passeio Público:  “Se deixe ficar por instantes/Na sombra desse baobá/Que virão fantasmas errantes/De sonhos eternos falar”.

Somos também Fortaleza

Fortaleza continua viva e habita de várias formas dentro da memória do seu povo. Ela precisa de cuidados, não digo somente do Governo como da própria população que ainda insiste em dizer que nossa cidade não tem história. Temos muito o que contar e precisamos ocupar nossos espaços, podendo assim exigir revitalizações e mais zelo.

Não só no "Berro" o genuíno Ednardo contou a história da capital cearense. A menção desse trabalho só nos faz refletir uma cultura que merece sim aparecer no meio da correria cotidiana. 

Como fã e pesquisador musical, não me canso de aplaudir nosso grande poeta que se mostra atemporal diante o tempo. A cidade mudou, talvez a brisa terral não sopre com tanta leveza, o Farol velho não consiga ser mais um dos olhos do mar, as dunas agora seguem escavadas pelas indústrias e na “Aldeia, Aldeota” ninguém pode bater na porta devido a insegurança, mas ainda podemos fazer jús a palavra que denomina esta terra e sermos fortes diante o tempo.

Viva a Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, do Passeio Público, da Praça do Ferreira e do Farol do Mucuripe. Viva a Fortaleza de Bárbara de Alencar, de Tristão Gonçalves, Padre Mororó e Antônio Sales. Viva a Fortaleza de Ednardo, que também é minha e sua. Viva a Fortaleza que teima resistindo!

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.