Ela costumava aparecer no meio da tarde, quando eu, meu irmão e minhas irmãs já havíamos retornado da escola. Batia palmas em frente ao portãozinho de ferro pintado de cinza de nossa casa, em Caucaia, e entoava a súplica de sempre. “Uma esmola, pelo amor de Deus!”.
A voz era metálica, algo esganiçada. O rosto, coberto de rugas. Os cabelos, em desalinho. A boca, quase banguela. Tudo isso – mais o nariz adunco – conferia-lhe um certo ar de bruxa de contos de fada.
Trazia uma grande sacola a tiracolo, onde depositava, em sacos menores e separados, os punhados de arroz, feijão, farinha e pão velho que recolhia de porta em porta, dia após dia. Eu morria de medo da feia megera.
Nos meus pesadelos, era naquela mesma surrada sacola que ela escondia os meninos e meninas que roubava de pais desprevenidos. Minha mãe cuidava de me tranquilizar. A dita senhora era apenas uma velha paupérrima, desprezada pela sorte. Era meio doida, sim, mas doida mansa.
Bem diferente das duas outras loucas que costumavam aparecer na rua. Uma, a Papa Ova, maltrapilha que diziam ter devorado os próprios filhos em um banquete macabro. Bastava alguém gritar-lhe o apelido, em tom de desafio, para que corresse atrás das crianças, paus e pedras nas mãos.
Outra, Zefinha, a tapeba que apedrejava as janelas das casas, dizendo que a cidade inteira era dela. “Ela tem razão de ter raiva”, ponderava meu pai. “Isso aqui era mesmo terra dos tapebas, antes de nós, brancos, roubarmos tudo o que tinham”.
Mas a mendiga com cara de bruxa não fazia mal a ninguém, garantia minha mãe. Mesmo assim, quando os adultos me pediam para levar a esmola até ela, eu ia com o coração à mão, as pernas tremendo, um frio subindo pela espinha.
“Ela não faz nada, é boazinha”, confirmaram-me dois meninos que sempre apareciam por ali, para se juntar à garotada na hora de bater bola no fundo do quintal de um dos vizinhos. Campinho de terra batida, com traves improvisadas com galhos e bandas de tijolos.
Ninguém sabia onde aqueles dois moravam. Apareciam do nada – e do nada desapareciam, logo após a partida. Eram irmãos. Um, cabelos encaracolados, parecia pouco mais velho e mais alto do que eu. Outro, cabeça quase raspada, mais baixo e mais novo. Por mais que hoje me esforce, não lhes recordo mais os nomes. Porém, jamais os esqueci.
Um dia, desafiaram-me a uma aventura. Queriam me mostrar uma parte da rua que eu não conhecia. Bem para lá da mercearia do seu Miranda, muito além da bodega do seu João Gabriel, onde a XV de Novembro desembocava em uma trilha que, segundo ambos me disseram, ia dar na praia do Pacheco.
Fiquei encantado com a descrição que fizeram. Mato fechado, passarinhos de todo tipo, frutas gostosas de apanhar nas árvores com a mão. Eu, menino tímido, que não tinha o costume de sair de casa a não ser na companhia dos pais ou irmãos, capitulei. Fui.
Caminhamos durante logos minutos, até toparmos com uma clareira no meio do matagal. “É aqui onde moramos”, revelaram-me, apontando para um casebre de taipa, coberto com palhas de coqueiro. Perto da porta, um pequeno jumento pastava em um monturo de capim.
Assustei-me quando vi a velhota aparecer à portinhola rústica. Era a mendiga que eu tanto temia. Os meninos a cumprimentaram com ternura. Ela, com uma cuia de farinha às mãos, respondeu com um meneio de cabeça, um meio sorriso, os olhos fixos em mim.
“A gente trouxe um amigo para brincar”, disse o menino mais velho. “Vamos ensinar ele a montar no jumento”, explicou o outro, para minha surpresa. “Cuidado para não fazerem arte”, recomendou a senhora, agora rindo de forma doce e franca.
Naquela tarde, não vi o tempo passar. Também não aprendi a montar, pois o jumentinho desembestou a correr após minha primeira tentativa desajeitada de lhe subir ao lombo. Voltei para casa já quase noitinha. Menti para minha mãe, dizendo que estava jogando bola até aquela hora. Faltou-me coragem para dizer onde estivera.
“Uma esmola, por amor de Deus!”, gritou a velha, no dia seguinte, diante de nosso portão. Levei-lhe alguns punhados de arroz e farinha. Ela me piscou o olho, sorriu-me com o único dente no canto da boca. Não parecia mais uma bruxa. No olhar, tinha até um certo jeito de fada. Ou de santa.
*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.