Não aguento mais essa gente atravessada por camadas de ressignificações

Estão também no topo da lista outros modismos atuais: “Não é sobre [...], mas sobre [...]”

Shows de comédia, segundo li em um jornal paulista, seriam “um jogo de diferentes camadas de significado”. A versão restaurada de determinado filme, também fiquei sabendo na mesma edição, teria feito a produção original ganhar “novas camadas de interpretação”. Enquanto isso, um diretor de cinema iraniano jurava existir, na própria obra, “várias camadas de abstração”.

Dias antes, em outro jornal, um crítico literário, com o costumeiro azedume, julgara inconsistente o enredo de certo livro, pelas “muitas camadas de artificialismo”. Um diretor teatral sugerira que a plateia, durante a exibição do espetáculo prestes a estrear, iria “descobrir as várias camadas do texto original”. E o sumiço de Belchior, vejam vocês, teria adicionado “novas camadas à mitologia” em torno do cantor e compositor.

A bela metáfora — “camada” —, ao que parece surgida nos meios acadêmicos, passou a ser usada à exaustão nos circuitos artísticos e em artigos jornalísticos. Assim, esvaziou-se. Tanto que, nos últimos tempos, espalhou-se pelas redes sociais. Virou lugar-comum. A cantora Adele, após longo período distante dos palcos, sentenciou no Twitter: “Derramei-me em muitas camadas”. Um ator brasileiro de telenovelas, após o parto da companheira, mostrou-se enternecido: “Reconheço a força da mulher em muitas camadas da vida”, declarou, pelo Instagram.

Modismos e muletas acadêmicas vulgarizam-se com grande velocidade. Basta uma busca rápida nos repositórios científicos para encontrar, por exemplo, dezenas de títulos de artigos, dissertações e teses com o termo “atravessamento(s)”: “Materialidades em atravessamentos”. “Atravessamentos de discursos e identidades”. “Políticas de atravessamento”. “Atravessamentos pós-modernos”. “Produções e atravessamentos do sensível”.

Por consequência, ninguém mais sente dor; mas é “atravessado por dores”. Ninguém mais é cheio de dúvidas, mas “atravessado por questões”. Uma antologia de contos não mais contém textos, é “atravessada por relatos”.

Em entrevistas, uma autora acolá afirma que escreve pelo fato de ser “atravessada por vozes urgentes”. Li por aí que “a violência é um fenômeno atravessado por processos difusos”. E, ainda, mais adiante, que os filmes de determinado festival de cinema são “atravessados por uma explícita dimensão política”.

Pode-se fazer um rol infindável desse tipo de cacoete. Estão também no topo da lista outros modismos atuais: “Não é sobre [...], mas sobre [...]”; “saberes”; “narrativa” (esta última no lugar de “versão” e, pasme-se, como sinônimo de mentira). “Gratidão” virou palavrinha enjoativa. Disponibilizar é outra praga linguística, utilizada em larga escala. “Ressignificar” e “ressignificação”, importados da semiótica, idem.

Pois bem. Não aguento mais esta gente atravessada por camadas de ressignificações.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.