Carta aos queridos Elenita, Sandrinha e Gilmar, vítimas da pandemia

Querida Elenita, obrigado por ter acreditado naquele jovem magricela, cabeludo e barbudo, a quem um dia, tempos atrás, você ofereceu o primeiro emprego, lá pelo finalzinho dos anos 1970, numa clínica de raio-x da Tristão Gonçalves.

Ao ter você como chefe, aprendi que a autoridade, o respeito e a motivação não se impõem e nem se conquistam com arbitrariedades, descortesias e prepotências, mas com o exercício diário da confiança, da fraternidade e da gentileza.

Soube que você lutou pela vida, contra a Covid-19, ao longo de seis meses, para dolorosamente sucumbir às intercorrências de uma doença devastadora. Penso em Stela e Luciano, seus filhos, a quem conheci crianças, e que com certeza devem ter crescido ouvindo-a falar de seu amor pela medicina e pela construção coletiva do bem-comum.

Querida Sandrinha, obrigado por ter iluminado meus dias de juventude, por apresentar-me à poesia de Fernando Pessoa, por ter me revelado que a vida pode se reger por outras órbitas para além da velha lógica dos binarismos, rancores e preconceitos.

Ao tê-la como amiga, aprendi que a leveza, a doçura e o sorriso são as formas mais elevadas de elegância, refinamento e distinção, que a inteligência e a sabedoria devem estar sempre acompanhadas da delicadeza, do bom humor e da simpatia.

Sofri ao saber que você, que amava tanto a vida e sobretudo a arte do encontro, foi outra vítima desta enfermidade que obrigatoriamente nos afasta, nos isola e nos abduz do convívio e da proximidade de quem amamos. Penso em Carol, sua filha, cuja foto ilustrou a capa de seu belo livro de poemas, que àquele tempo eu lia em voz alta antes de dormir, como se fosse um breviário de orações.

Querido Gilmar, obrigadíssimo pelo tanto que me ensinou, em relação ao jornalismo, às riquezas dos arquivos vivos, ao exercício da escrita e, mais do que tudo, ao modo de ser e estar no mundo. Obrigado também por ter me reconciliado com os estudos acadêmicos, por ter sido sempre um interlocutor atento, presente, solícito.

Ao tê-lo como professor, mestre e amigo, aprendi a estar aberto ao novo sem desprezar a memória histórica, a conciliar a fluidez do texto à necessária consistência das fontes, a buscar a universalidade a partir dos sertões mais profundos.

Foi doloroso, nos últimos dias, receber as notícias que chegavam do Ceará, dando conta de sua gradativa agonia e de sua até agora inconcebível partida. Penso em nós, todos os seus órfãos intelectuais, que perdemos uma referência ética, um exemplo supremo de brilhantismo, afetividade e atitude crítica.

Queridos Elenita, Sandrinha e Gilmar. Dizer que já são mais de 370 mil mortos no Brasil pelo coronavírus é algo assustador. Mais aterrorizante ainda é saber que cada um deles, assim como vocês, tinha nome e sobrenome, amigos e parentes, que foram histórias de vida brusca e precocemente interrompidas.

Não se trata apenas de números frios de uma nefanda estatística. A dor é imensa e o coração está em frangalhos, queridos Elenita Pinheiro da Fonseca, Sandra Mesquita e Gilmar de Carvalho. Mas não é menor a indignação diante da irresponsabilidade, do negacionismo e do desdém que nos levou a tamanho absurdo.

Da mesma forma que é preciso dar nomes às vítimas para que tenhamos a verdadeira dimensão da tragédia que se abateu sobre nosso país, faz-se necessário nomear também o crime a que uma nação inteira está sendo submetida: GENOCÍDIO.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.