Crise institucional: juristas cearenses divergem sobre induto de Bolsonaro a Daniel Silveira

Esta coluna buscou cinco especialistas para comentar o momento delicado entre os poderes da República. Veja a opinião de cada um deles

Juristas cearenses de diferentes correntes de atuação divergem a cerca do induto concedido pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) ao deputado federal Daniel Silveira (PTB/RJ). Entre os especialistas ouvidos por esta coluna não há unanimidade nem se o instrumento da “graça” é aplicável neste caso concreto. O que todos concordam, entretanto, é que há uma crise institucional grave em curso.

Esta coluna demandou especialistas no campo do Direito para extrair os mais diversos entendimentos possíveis, a fim de contribuir com o complexo debate a respeito das relações entre os poderes no Brasil e os riscos para a institucionalidade nacional.

Foram ouvidos os seguintes profissionais: Valmir Pontes Filho, Filomeno Moraes, Leandro Vasques, Alcimor Rocha Neto e Renno Ximenes.

As divergências de ideias entre eles, cada um com reconhecida atuação jurídica e acadêmica, mostra que estamos diante de um impasse que demandará maturidade institucional para ser superado.

Eles foram demandados para responder as seguintes perguntas:

  1. A concessão do induto da "graça" é cabível no caso do deputado em questão?
  2. Há possibilidade de contestação do indulto, no próprio STF ou no Congresso?
  3. A quem cabe a última palavra sobre o assunto?
  4. A concessão do benefício antes mesmo do trânsito em julgado pode significar nulidade?
  5. Há que se falar em ferimento ao princípio da impessoalidade, por se tratar de um aliado do presidente?

 

A seguir, as manifestações de cada um eles sobre as questões centrais da problemática:

 

Valmir Pontes Filho

Sempre sustentei que não é possível “aplicar a lei”, mas a interpretação que dela se faz, respeitada, porém, a “moldura normativa” de Kelsen. Existem limites máximo e mínimo para que a tarefa hermenêutica se opere.

Claro que se há de privilegiar a intentio legis, ou seja, sua essência.

Ocorrem casos, todavia, em que a dicção literal da norma é insuperável. Se a Constituição, regra suprema da ordem jurídica positivada, assevera que os deputados federais e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões palavras e votos, qual o “espírito” senão o de proteger os parlamentares, eleitos democraticamente pelo povo?

Pode-se discordar, ou mesmo simplesmente não gostar, das palavras proferidas pelo Deputado Silveira (de todo, execráveis, penso eu), mas se deve “lutar até à morte pelo direito de dizê-las” (VOLTAIRE).

A decisão do STF foi, digo-o novamente (com todo o respeito a quem tem opinião diversa e a de dez dos srs. ministros), de uma estratosférica inconstitucionalidade. Também pelo fato de a “vítima” ter atuado como gestor do processo inquisitorial e julgador do feito, sem se considerar impedido ou suspeito.

Nem cabe ao STF “anular” ou “reconsiderar” uma competência privativa, exclusiva e expressa conferida ao Presidente da República, qual a de conceder graça ou indulto individual a condenados (CF, art. 84, XII). A própria jurisprudência da Corte é farta nesse sentido, inclusive quando o então Presidente Temer concedeu indulto a condenados pela “Operação Lava Jato”. Irá, agora, contradizer-se?

Nem ao Congresso, a quem só compete sustar atos normativos presidenciais que exorbitem do “poder regulamentar ou dos limites da delegação legislativa” (CF, art. 49, V). E este, em definitivo, não é o caso.

Mesmo antes do trânsito em julgado da decisão do STF o ato Presidencial é válido e surte efeitos (inclusive quanto às sanções subsidiárias à de prisão). Nem existiu, a meu sentir, ferimento ao princípio da impessoalidade, tão só um juízo discricionário (mas fundamentado, como dito) do emitente do Ato.

O Presidente, que justificou amplamente seu ato na respectiva motivação (tudo publicizado) não pode receber contradita alguma, mesmo oriunda do Judiciário, sob pena de se instaurar uma grave crise institucional. E, em tal hipótese – que espero nunca ocorra – a “garantia dos poderes constitucionais” cabe às Forças Armadas (CF, art. 142, caput).

Filomeno Moraes 

01. Em tese, sim. Mas a problemática vai além da possibilidade jurídica. Remete a uma questão de fundo, já teoricamente abordada por um dos “pais fundadores” da separação de poderes. Montesquieu já enfatizava que os três poderes deveriam formar um repouso ou uma inação. No entanto, em virtude do movimento necessário das coisas, eles são obrigados a seguir e forçados a seguir de comum acordo.

Na verdade, o decreto de Bolsonaro, autoritário, ressentido e boçal, subverte o “comum acordo” necessário ao bom funcionamento da ordem institucional. Com tal medida, o presidente da República se torna o déspota que inaugura selvagemente aquilo que, até agora, tinha sido ameaça.

02. Sim, tanto nos aspectos técnico-jurídico quanto jurídico-principiológico. E o STF é o foro adequado para tanto.

03. No sistema constitucional brasileiro, a última palavra cabe ao STF, nele repousa a proverbial possibilidade de, se for o caso, até “errar por último”. No entanto, a última palavra sobre o assunto cabe à resistência dos grupos sociais contrários à escalada autoritária provocada pelo presidente da República com a emissão do decreto. A questão é, pois, é menos jurídica e mais política, e vai da insurgência civil no momento à insurgência política na oportunidade da eleição presidencial de outubro próximo.

04. Não me parece que tal tecnicidade seja fundamental. Inclusive, porque o presidente da República poderia reeditar o decreto tão logo o acórdão do STF transite em julgado. A tragicidade da situação é de ordem política, qual seja, a medida presidencial é claramente retaliatória e embute uma despropositada atitude de relativizar a autoridade da decisão judicial, por 9 votos a 1, que condenou o deputado Daniel Silveira.

05. Acredito que o decreto pode ser atacado pelo inequívoco desvio de finalidade e pela ofensa aos princípios constitucionais da separação de poderes e da impessoalidade. E, no fundo, constitui crime de responsabilidade do presidente da República, cuja apuração e penalização depende de decisão política mais complexa, haja vista que mais de uma centena de pedidos de impeachment dormitam nos escaninhos da presidência da Câmara. 

Leandro Vasques 

1. O instituto da graça, no caso em questão, é aplicável com base no artigo 84, caput, inciso XII, da Constituição Federal, bem como no artigo 734 do Código de Processo Penal. Há fundamento legal para esse ato administrativo, o qual, de todo modo, deve se sujeitar aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, previstos no artigo 37 da Constituição Federal.

2, 3 e 4. O STF pode realizar o controle de constitucionalidade do ato presidencial, declarando-o inconstitucional, tendo em vista que ainda não houve o trânsito em julgado da condenação do deputado e que o ato estaria violando o princípio constitucional da impessoalidade.

5. A crise institucional que teve como último episódio a concessão da graça a Daniel Silveira, aliado de Bolsonaro, começou antes mesmo da condenação desproporcional, no sentido da melhor técnica jurídica, ao deputado, a despeito da perniciosidade de suas condutas.

O inquérito das fake news capitaneado pelo Ministro Alexandre de Moraes apresenta questões problemáticas desde o seu nascedouro, os quais vêm sendo debatidos pela comunidade jurídica, a exemplo da instauração e da condução pelo magistrado que é também vítima dos fatos sob apuração.

A concessão da graça, com todos os seus senões já apontados, agora deve gerar uma reação do Supremo Tribunal Federal, possivelmente pelo referido controle de constitucionalidade.

Alcimor Rocha Neto 

1. Sim. Discricionariedade do presidente da República.

2. Possibilidade de contestação, sim, mas não me parece que com razão do argumento manejado para contestar.

3. A última palavra cabe sempre ao Poder Judiciário.

4. Este o ponto mais controverso desta questão. Mas, a mim parece, que se o presidente pode conceder a graça com a condenação vigente, quanto mais com a ameaça de ela vir a viger.

5. De jeito nenhum. Trata-se de uma faculdade que a lei e a Constituição Federal concedem à instituição Presidência da República - como que confiando esta sensibilidade a quem teve os votos para ocupar o cargo e estar legitimado para tal.

Renno Ximenes 

1. Sob a seara jurídica é inadmissível a concessão. O Brasil vive uma irracionalidade política dualista, por um lado composta por uma Teocracia Pentecostal populista miliciana e por outro, um sentimento dejavú de qualidade de vida no imaginário popular, aliado aos erros cometidos pela Lava-Jato, na minha compreensão uma manobra geopolítica manipulada pelo Departamento de Estado dos EUA.

Não há possibilidade de Indulto individual de ofício, ele deveria surgir somente após o trânsito em julgado do processo, com requerimento do condenado ao Juízo responsável pela Execução de sua sentença, o qual enviaria à Presidência da República. Ou ainda pelo Ministério Público, Conselho Penitenciário ou Autoridade Administrativa.

2. Há a possibilidade de contestação de qualquer ato ou norma jurídica inconstitucional no STF, o rol elencado no Art. 103 da Constituição Federal.

Já acerca da competência do Congresso Nacional de debater ou questionar o Decreto, não vemos legitimidade. Pois o Art. 49 da Constituição Federal limita aos parlamentares - através de Decreto Legislativo - os atos exorbitantes ao seu poder regulamentar e os de delegação legislativas conferidos, emitidos pelo Presidente da República.

Portanto o Congresso Nacional não possui competência constitucional pra avaliar legalidade dr indulto, graça ou anistia.

3. A única e última palavra sempre será da competência do Presidente da República, desde que o ato preencha os requisitos constitucionais, legais e regimentais. Mas isso não significa poderes ilimitados no tempo e no espaço, por isso o STF é o guardião da Constituição Federal e deverá decerto pronunciar-se pela inconstitucionalidade dessa Graça, concedida pelo Presidente da República, sem contemplar os aspectos constitucionais.

4. O princípio da separação dos poderes e os seus plenos funcionamentos ê o mais preocupante. E ele foi atingido em cheio, com a expedição do Indulto Individual ao Deputado pelo Presidente da República.

O Judiciário ou a Câmara Federal poderá apreciar se houve Crime de Responsabilidade, conforme Art. 4, II da Lei 1079/50.