O Voa Brasil foi anunciado pelo ministro de Portos e Aeroportos, Márcio França, como um programa que vai trazer mais pessoas para o modal aéreo. O programa seria destinado a idosos, aposentados, pensionistas, servidores das três esferas (União, estados, municípios), empregados de estatais e estudantes do Fies, com teto salarial de até R$ 6.800. Essas pessoas teriam a expectativa de poder passar a viajar de avião.
Assim, poderiam viajar uma vez por ano (ida e volta), pagando bilhetes de R$ 200 cada trecho.
Considerando o valor atual das passagens aéreas, é normal questionarmos: essas passagens serão subsidiadas? Quem vai pagar essa conta? Será que isso vai aumentar ainda mais os bilhetes aéreos?
Segundo o ministro, a ideia é ocupar os assentos ociosos das companhias, mudando a lógica atual de comercialização das passagens aéras. Abaixo, explico como a ideia surgiu, a relevância da proposta e as chances de dar certo.
Privilégio de poucos
Estava em Sobral, dia 26 de fevereiro, na inauguração do novo aeroporto da cidade quando fui convidado para me encontrar com o ministro de Portos e Aeroportos num evento de uma grande companhia aérea no dia primeiro de março do presente ano.
Lá, ao final da solenidade, houve uma coletiva de imprensa com Márcio França, que iniciava uma fala sobre como o prazer de voar comercialmente era um privilégio de pequena quantidade de brasileiros:
Temos 100 milhões de passageiros por ano, porém, quando vamos ver, esses passageiros representam apenas 10 milhões de CPFs. E todos os demais que ainda não voam?
Além do mais, Márcio França discorria sobre a natural ociosidade que abate parte dos assentos dos aviões no Brasil e no Mundo inteiro, levando-os a decolar vazios.
"Nesse setor, temos uma ociosidade de assentos vazios próxima a 20%, ou seja, a ocupação média das aeronaves é de 80%. Queremos buscar formas para que mais pessoas voem, com tarifas boas".
Assim, lá em 01/03, Márcio França soltava aparentemente, em primeira mão, as bases do que está sendo nos últimos dias chamado de plano Voa Brasil, programa que já repercutiu bastante desde a última sexta-feira (10/03), sobretudo para os que vêem como uma chance de voar mais barato, também para aqueles que temem por acabar pagando por passagens mais caras.
Em que se baseia o programa?
Os grupo a serem beneficiados com o Voa Brasil têm em comum um um relacionamento bem estabelecido com o poder público, possuem renda garantida. Será possível parcelar a passagem em 12 vezes, como num consignado, mediado por “Caixa e Banco do Brasil”, nas palavras do Ministro.
Em entrevistas, o ministro citou como exemplo a possibilidade de um casal alvo do programa poder parcelar uma viagem de ida e volta em até 12 vezes: "setenta e poucos reais por mês, algo que cabe no bolso. Se pagar antecipado, poderá voar novamente no mesmo ano", declarou à CNN Brasil.
Márcio França também disse que o programa seria voltado para os meses de baixa estação, meados de fevereiro até junho e de agosto a novembro. As passagens seriam normalmente vendidas nos sites das companhias aéreas e estariam restritas ao público-alvo mencionado.
Estratégia coerente
Antes da pandemia, o IBGE já mostrava que dinheiro era o principal entrave que impedia pessoas de viajar: em apenas 20% dos domicílios, viagens de quaisquer tipos foram reportadas. Nos domicílios em que foram reportadas viagens, apenas 15% reportaram viagens de avião.
Usando lógica matemática, pode-se inferir: sem ‘grana’ não se viaja de avião; ou para viajar de avião precisa-se ter dinheiro.
O Voa Brasil tenta quebrar essa lógica, trazendo mais pessoas (ainda que artificialmente) para voar, pagando pouco, construindo a lógica óbvia para qualquer ramo da economia: pagando pouco, qualquer pessoa pode voar.]
Assim, assumindo que a afirmação do Ministro é totalmente verdadeira, menos de 5% da população brasileira voa, deve ser uma das atividades mais exclusivas (top, na gíria) do País.
Não é nem um pouco razoável uma taxa baixa dessa: voar é conveniente, rápido, fácil, seguro, apaixonante, dinamiza a economia, reduz mortes no trânsito e etc.
A cultura de voar jamais se desenvolverá se a pessoa que nunca voou, continuar sem voar: uma obviedade.
Voar deve ser sim, portanto, encorajado, sobretudo sem envolver dinheiro público, subsídios.
Nos últimos anos, involuímos em número de aeroportos com voos comerciais. Em 2000, eram mais de 200; em janeiro de 2023, eram 167 com voos comerciais. Esse movimento aconteceu principalmente porque ficamos mais dependentes de jatos médios no Brasil (mais de 144 assentos).
Desigualdade financeira e geográfica
Em 2022, o Brasil todo teve aproximadamente 95 milhões de assentos vendidos, porém contabilizando apenas os três maiores aeroportos de SP, que não voam entre si, Guarulhos, Congonhas e Campinas, estamos falando de 57 milhões de assentos vendidos (ANAC). Assim, um único estado do País movimenta em apenas 3 dos seus aeroportos com voos comerciais (SP tem 12), 54% dos assentos comerciais.
É estarrecedor que apenas 10 milhões de pessoas voem: se fossem 20 milhões, algo ainda precisava ser feito. Começo a pensar que a indústria de aviação comercial brasileira não é desenvolvida, não é madura e o número baixo de empresas aéreas reflete isso.
A maior preocupação das companhias aéreas, como qualquer comerciante faz, deveria ser prospectar mais clientes, isso é o básico para qualquer empreendedor. O plano Voa Brasil, ainda que limitado (falaremos ainda sobre), propõe isso.
Assim, no deserto de ideias para desenvolver a aviação, qualquer ideia que objetive expandir a quantidade de clientes deve ser, pelo menos, debatida.
Ociosidade
Prezado Leitor, nessa seção gostaria de explicar que existe sim ociosidade de assentos na aviação comercial brasileira. Na mesma entevista citada acima, uma jornalista questionou França sobre qual era a fonte da informação de que havia em torno de 20% de ociosidade na baixa estação. A fonte é a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), que mensalmente solta os reportes de ocupação dos voos comerciais.
Pois bem, na alta estação de janeiro de 2023, no maior aeroporto brasileiro (Guarulhos-SP), sobraram em média muitos assentos nas companhias aéreas brasileiras nos trechos domésticos, dado que as ocupações médias foram todas menores de 85%.
O Ministro está certo quando diz que a ociosidade de assentos é em média de 20%, porém esqueceu de mencionar que ela não ocorre só na baixa estação, conforme vemos abaixo:
Ocupação Doméstica Companhias em GRU – jan/23
Companhia | Ocupação Partindo de GRU (jan/23) |
GOL | 85% |
TAM | 79% |
AZUL | 76% |
PASSAREDO/VOEPASS | 45% |
Com os números acima, só a GOL, a que melhor ocupação teve, decolou com aproximadamente 3 mil assentos vazios por dia, de Guarulhos. A quem interessa isso?
Adicionalmente, numa das cidades mais desejadas para férias do País, Fortaleza, também em janeiro, a ocupação das três maiores companhias igualmente era próxima a 83%, ociosidade média de 17%. Um representante da Azul essa semana, em entrevista ao UOL informou que “Companhias aéreas trabalham com ociosidade e isso não é um problema.”
Se a companhia aérea não preencheu todos os assentos é porque:
- faltam passageiros buscando passagens, ou
- os candidatos a passageiros não se submeteram à precificação imposta pela companhia
Voltando aos números do ministro França e pensando na população economicamente ativa do Brasil, que é de aproximados 100 milhões de habitantes, 10% destes voam de avião.
Assim, é pouco provável que faltem passageiros buscando passagens. Aos que se submetem aos preços, a Iata (Associação Internacional de Transportes Aéreos) diz que o brasileiro viaja 0,42 vezes de avião por ano. Como comparação, representante da Azul informou em entrevista ao UOL que os colombianos viajam duas vezes mais que nós.
Assim, a ideia de trazer mais pessoas para voar, base do Voa Brasil, é básica, óbvia e é muito necessária para desenvolver a aviação nacional. A União se apresenta como facilitador da relação entre novos clientes e as companhias aéreas. Assim, a União consegue ter escala, ou seja, ter muitos candidatos ao Voa Brasil e pedir que um banco público operacionalize e facilite (bancar não) a compra das passagens.
Entenda o custo marginal
A companhia aérea ganharia mais se vendesse cada um dos seus assentos vazios por R$ 1? Certamente, não, porque não deve superar o custo marginal (custo de transportar um passageiro a mais).
Porém, esse custo marginal é tão menor quanto mais cheio está o avião, ou seja, quanto mais cheio está o avião, mais fácil deveria ser aceitar mais passageiros. Na prática, ocorre o contrário, quanto mais cheio o voo, mais caro o assento vazio se torna. É a velha lei da oferta e procura em operação.
Assim, as passagens do Voa Brasil podem sim ser mais baratas e as companhias ganhariam mais dinheiro. Isso, nos processos negociais, é chamado de condições ganha-ganha: ganha porque mais pessoas viajam e ganha a companhia aérea porque lucra mais.
O representante da Azul, na mesma entrevista, reforçou a lógica por trás do pensamento ganha-ganha. "Nós vamos trabalhar com momentos de baixa estação. Vemos com muita positividade. Independente dos grupos alvo, vemos com bons olhos, isso desenvolverá a cultura do voo comercial, traremos mais pessoas para voar", disse.
Ou seja, com o Voa Brasil, ninguém paga a mais, mas sem o programa há muito perde-perde.
Análise Crítica
Márcio França declarou ainda esperar que 12 milhões de passagens seriam comercializadas no Voa Brasil. Esse número parece exagerado, sobretudo porque o executivo informara que nos semestres iniciais, esperava que apenas de 5% a 10% da ociosidade dos assentos (20%) seriam aplicáveis ao programa.
Um adendo: nem sequer o Voa Brasil se mostra como uma intervenção às companhias, já que surge atacando 5% dos assentos vazios, não chega a 2 assentos por voo.
Se supusermos que as três grandes operam mil voos por dia (a Azul opera 900, por exemplo), são 3 mil voos/dia. Supondo 180 assentos em média (média alta, dado que a Azul tem muitas aeronaves menores), teríamos 197 milhões de assentos disponíveis num ano.
10% da ociosidade de 20% dos assentos seriam 3,9 milhões de assentos por ano, número bem aquém do comentado pelo titular da pasta.
Outro ponto que poderia ser revisto é a inclusão de estudantes do Fies, mas não a inclusão de estudantes com bolsas de mestrado e doutorado. Estes também têm renda garantida, durante o tempo de estudos. Da mesma forma, estudantes universitários com bolsas mensais com o CNPQ, Ministério da Educação, por exemplo.
Adicionalmente, acredito que o valor teto de R$ 6.800 para os grupos alvo é demasiado. Esse valor é mais que 3 vezes maior do que a renda mensal do brasileiro. Quem ganha esse valor, pode pagar mais por passagens aéreas naturalmente e, provavelmente, já paga.
Assim, proponho que essa faixa de renda mais elevada não pague R$ 200 mas R$ 500 por trecho. Assim, haveria ainda menos risco de respingar aumento de valores para quem não for contemplado no Voa Brasil.
Companhias já abraçaram a causa
Márcio França afirmou que as companhias GOL e Azul toparam a ideia do programa e que “certamente a Latam também vai topar”. "Elas [as empresas] estão formatando as ideias de como vão propor isso”. De fato, nesta semana a Latam anunciou que está "à disposição para analisar, propor e viabilizar iniciativas" como esta.
Desejo, assim, que esse assunto necessário amadureça nos próximos meses, que seja melhorado e que de fato aconteça.
Os céus do Brasil ainda são desertos! Precisamos povoar esses céus com muito mais voos e as bases do Voa Brasil, ou outro nome que surja, são propícios para tal!